05 junho 2016

mário de sá-carneiro / serradura



A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minh´ Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da  «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia! …

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar: «via a Alemanha» …
Mas a minh´ Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade…

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

Paris, Setembro  1915


mário de sá-carneiro
poemas



04 junho 2016

níkos kavvadías / o piloto nagel



Nagel Harbor, um piloto norueguês de Colombo,
depois de pôr em suas rotas certas os navios
que zarpavam para portos ignotos e distantes,
descia para o barco, rosto grave, pensativo,
as duas mãos rudes cruzadas adiante do peito,
e, com seu velho cachimbo de barro fumegando,
a falar consigo mesmo nalguma língua nórdica,
ia-se embora enquanto as naus sumiam no horizonte.

Nagel Harbor, ex-capitão da marinha mercante,
depois de ter corrido o mundo inteiro, certo dia
cansou-se e resolveu ficar de piloto em Colombo.
Mas lembrava-se sempre do seu país tão distante
e das ilhas que estão cheias de vozes, as Lofoten.
Um dia, de repente, morreu dentro do seu barco
de piloto, ao escoltar o navio-tanque «Fjord Folden»
que partia, fumegando, para as ilhas Lofoten…


níkos kavvadías
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. josé paulo paes
assírio & alvim
2001



03 junho 2016

inês lourenço / ária



É belo o tempo de Inverno,
no silêncio, a lenha húmida
das maternas canções da chuva.
Na lentidão de Janeiro
fica mais longe a morte. As aves
habitam nos beirais
como príncipes destronados.


inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015




02 junho 2016

daniel jonas / a casa despida


Uma vez mais
a casa despida.
Lentas fotografias, moles molduras,
álbuns blindados, o pó de tudo,

o silêncio prevalecente
da despedida.
Uma casa mais
eu deixo.

Por vezes parece que
sou eu quem fica
e ela que me deixa.


daniel jonas
bisonte
assírio & alvim
2016



01 junho 2016

rui diniz / colagem



Albéniz percorreu as épocas mesetárias
num velho Renault de 1911. O seu
sorriso era a herança de um veleiro
ou um corsário do tempo de isabel, a católica.
O campeão dos bebedores de cervejas,
um tal hornblwer, espalhava a alegria
por todo o país. A viagem diluía as ruas
de basalto, os oleiros de córdova, a cera
das próprias asas. E os pavios das velas
extintos, extintos.

Foi o vinho tinto, catalunha
mais de um mês durou a botija
de couro.
A cantábria
ébria
ufana
do áspero vento. A virgem lola.

Músicos d´españa.



rui diniz
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






31 maio 2016

eloy sánchez rosillo / lembra-te



                Quando o acaso ou o costume, dentro de muitos anos,
de novo aqui te tragam, se fores vivo, e a vida
para ti seja só lembrança dissipada
dos antigos dias, lembra-te que houve um tempo
em que as coisas, por milagre, foram de outra maneira:
lembra-te que hoje este jardim
te ofereceu sua paz, das roseiras
em flor, do sol que te acompanha
e te ajuda com a sua luz tépida
a ser feliz e a saber que és jovem.



eloy sánchez rosillo
as coisas como foram
trad. josé bento
assírio & alvim
2004



30 maio 2016

faraj birqdar / e quando o desespero



E quando o desespero
vier bater à tua porta
levanta-te, escreve uma mensagem simples
na parede
ESTE HOMEM ESTÁ DESESPERADO

A seguir diz isto ao teu senhor, o sultão:
A tua cela não é mais estreita que a sua sepultura,
Nem mais duradoura que a sua vida.
Há-de chegar o dia em que a terra
também há-de acolher o seu cadáver,
primeiro os pés
com o esquecimento a acompanhar o funeral.


faraj birqdar
a palavra interdita
tradução de Maria de Lourdes Guimarães
campo das letras
2001



29 maio 2016

egito gonçalves / identificação



O areal é o desenho branco do teu corpo
E o rio corre como se tu não existisses…
Sonolentas pálpebras cerrando-se
As nuvens cortam as manchas do luar.

Aguardando o quebrar da tua voz
Que a sulcará de ternura e de ruído
A paz ronda a silenciosa margem
Onde se estende o teu vulto imaginado


egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971


28 maio 2016

daniel faria / sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos



Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel  leão
2002



27 maio 2016

heiner müller / poema antigo



De noite atravessando o lago a nado o momento
Que te põe em causa Já não há outro
Finalmente a verdade Que tu mais não és que uma citação
De um livro que não escreveste
Podes escrever uma vida para negar isto na tua
Fita de máquina descorada O texto lê-se à transparência



heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997




26 maio 2016

miriam van hee / primavera na shildersstraat



Via-te lá do outro lado
como se de um abrigo subterrâneo
saísses: cauteloso e espantado
com a luz que brilhava sobre os telhados
ainda trazias o casaco comprido de inverno
podia ter feito um sinal
podia-te ter feito perguntas
havia entre nós a rua como água
atrás de mim estavam mães sentadas no parque
em redor do museu, os filhos
levavam bofetadas até chorarem
a mim salvou-me o tempo,
a distância, este poema



miriam van hee
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
tradução de fernando venâncio
assírio & alvim
1997



25 maio 2016

harold pinter / tu à noite



Tu à noite havias de escutar
A trovoada e o ar ambulante.
Tu nessa margem hás-de virar
Para onde estão as intempéries dominantes.

Toda essa honrada esperança
Ruirá na ardósia,
E destroçará o inverno
Que vocifera a teus pés.

Se bem que ardam os altares apaixonantes,
E que o sol deliberado
Faça ladrar a águia,
Tu avançarás na corda bamba.

c. 1952


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006


24 maio 2016

p. s. rege / sonho



Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam –
Flores que não podiam sequer dizer quem eram…
E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda uma trémula ponte
Entre nós.



p. s. rege
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. cecíla rego pinheiro
assírio & alvim
2001