20 agosto 2015

pedro tamen / e agora: a tua pele.


E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
No côncavo da mão o sol nascia.


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
s/d





17 agosto 2015

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...


  

henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999




16 agosto 2015

al-houtay’a / tudo que é novo é belo



De tudo o que é novo nasce um novo prazer,
mas eu  sei  que não é nova a jovem morte.

Ela fere pelas costas, e não é doce como o açúcar,
nem é como o vinho, nem como o sumo das uvas.


al-houtay’a
quatro poemas árabes
o bebebor nocturno
poemas mudados para português
por herberto helder
porto editora
2015



14 agosto 2015

carlos drummond de andrade / balanço



A pobreza do eu
a opulência do mundo

A opulência do eu
a pobreza do mundo

A pobreza de tudo
a opulência de tudo

A incerteza de tudo
na certeza de nada



carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
antologia apresentada e
organizada por arnaldo saraiva
o jornal
1989



13 agosto 2015

pentti saaritsa / não irei



Não irei
uma vez mais
onde me esperam
 
Que se passa comigo?                                  
 
Quero ir a algum sítio de improviso
e ser recebido como o filho pródigo.

  
pentti saaritsa
poemas
tradução de egito gonçalves





12 agosto 2015

daniel faria / explicação da escuta



Ninguém me chama

Escuto o calcanhar do pássaro
Sobre a flor
E não respondo


daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003




11 agosto 2015

alexandre vargas / mistério



Os montes têm segredos escondidos. Sobretudo das bases emitem vibrações dos Leões da Grande Mãe. Da descida aos vales misteriosos (peixes) de uma erva extremamente escura e macia.
Um leão familiar como no soneto de antero. Uma mulher muito bela sob o seu véu, templos a borbotar de palmeiras nos terreiros. E nós…
E observo a luz que se dilata sob as nuvens perspicazes. Ou se contrai no contraluz do monte que brilha o sol poente.
A atmosfera que se escapa fresca de onde estou. Assim me posso renovar


  
alexandre vargas
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



10 agosto 2015

narciso pinto / cheirar-te pela manhã



Cheirar-te pela manhã
Como se cheira uma maçã

(sem que o Goethe venha à baila)

Quando o sol se levanta
Já ninguém recusa uma boa foda…

Um beijo teu é quase um aríete
A demolir os meus alicerces.

A vizinha insiste com a vassoura
No estuque de um sonho nosso…

És o único despertador
Que eu vou tolerando!


narciso pinto
sarro
(da paixão à cova)
chiado editora




09 agosto 2015

alberto caeiro / bendito seja o mesmo sol



Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu, 
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural - mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral ...
  

alberto caeiro




08 agosto 2015

al berto / amor dos fogos



...vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos

... vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir...
... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras...
... iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias...

  

al berto



07 agosto 2015

helga moreira / dobra palavras, silêncios.



Dobra palavras, silêncios.
Para o corpo pede uma qualquer
hora de encanto.
Falo da beleza dos seus olhos
e o rosto estremece,
cúmplice.



helga moreira
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



06 agosto 2015

arsenii tarkovskii / pela noite concedias-me o favor,


Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretensiosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.



arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



05 agosto 2015

ana hatherly (8-5-1929 / 5-8-2015)



Um ritmo perdido...



Se uma pausa não é fim
e silêncio nâo é ausência,
se um ramo partido não mata uma árvore,
um amor que é perdido,será acabado?

um ouvido que escuta
uma alma que espera...
-uma onda desfeita
É ou já não era?

Nuvem solitária,
silenciosa e breve,
nuvem transparente,
desenho etéreo de anjo distraído...

nuvem,
esquecida em céu de esperança,
forma irreal de sonho interrompido..

nuvem,
luz e sombra,
forma e movimento,
fantasia breve de ânsia de infinito...

nuvem que foste
e já não és:
desejo formulado e incompreendido.




ana hatherly