06 novembro 2014

jaime rocha / zona de caça


17.

Não se sabia se eram anjos, os rapazes, se tinham
vindo do círculo dos infernos ou se nasceram ali
mesmo no meio das mulheres, sozinhos, como
brinquedos domésticos. Nem se a mulher havia
sido desfigurada por um corvo, competia ao
guerreiro julgar essas imagens logo que o cavalo
o transportasse por entre as árvores vestido de
cromados. Foi num desses dias de Junho, numa
paisagem em que um pastor de cabras varava
uma ribeira quase seca, que o cavaleiro saiu de
dentro de uma pintura levando consigo a mulher.
Tudo se passara inesperadamente, com os pássaros
agitados, aos gritos. Uma grande língua de cobra
tapara o quadro do pintor onde eles existiam e
lançara-os contra uma casa no meio da plantação.
Houve quem dissesse que era um pintor das águas,
lá no Bósforo, onde os cavalos são saudados pelos
peixes. Toda a gente sabia que ele dava vida às
cores e ressuscitava os mortos.

  


jaime rocha
zona de caça
relógio d´água
2002




05 novembro 2014

antónio ramos rosa / na grande confusão



Na grande confusão
deste medo 
deste não querer saber 
na falta de coragem 
ou na coragem de 
me perder me afundar 
perto de ti tão longe 
tão nu
tão evidente 
tão pobre como tu 
oh diz-me quem sou eu 
quem és tu?
  


antónio ramos rosa




04 novembro 2014

Ibn ´ammâr / eis nuvens



eis nuvens…
que espessas são!
parecem formadas,
deste azul lado do céu,
do fumo que ao arder
madeira verde lhes deu.
vem chuva fina!
poalha de prata
polvilhar terra ambarina.
e se um instante
o sol se fica a brilhar
é uma escrava provocante
que se mostra a quem a quer comprar.


ibn ´ammâr
o meu coração é árabe
adalberto alves
assírio & alvim
1999



03 novembro 2014

alberto caeiro / o amor é uma companhia



O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.




alberto caeiro




02 novembro 2014

henri michaux / mãos eleitas


                              Para Micheline Phan-Kim


Após meditação
nasceria uma mão
serena
aliviando o oprimido
reforçando o sábio
desprendendo o prostrado
portadora
reparadora
uma grande mão de LUZ
. . .

Numa outra vida
numa outra vista
num outro vazio
sem idade, sem rugas
calma, indulgente, afastando o mal, as peregrinações
as recriminações
. . .

Uma mão solta
surgiria
que teria vivido à parte
numa fonte
numa água lustral
cravada no Ser

extirpando todo o estigma

Uma mão imaculada mostraria a Via
pura como é azul o céu azul
azul sem angústia
não o azul onde a cor preta começa
sem deixar lugar a dúvida nenhuma
eliminando, anulando o charco dos espectros
saído das entranhas
que põe a oscilar a base . . .

Mão de Azul que anula a mão tântrica



henri michaux
o retiro pelo risco
chemins cherchés chemins perdus transgressions.
tradução júlio henriques
fenda
1999




01 novembro 2014

herberto helder / os amigos



Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.

Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
 ─ Temos  um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.

De paixão.



herberto helder
ofício cantante
poesia completa
assírio & alvim
2009




31 outubro 2014

louise glück / paisagem



1.

O sol põe-se por detrás das montanhas,
a terra arrefece.
Um estranho amarrou o cavalo a um castanheiro despido.
O cavalo está tranquilo – volta de súbito a cabeça
ao ouvir, na distância, o som do mar.

Faço aqui a minha cama por uma noite,
Estendo a manta mais pesada sobre a terra húmida.

O som do mar –
quando o cavalo volta a cabeça, ouço-o.

No caminho, entre os castanheiros despidos,
um pequeno cão segue o dono.

O pequeno cão – não era ele que costumava adiantar-se,
forçar a trela, como que para mostrar ao dono
aquilo que vislumbra além, além no futuro? –

o futuro, o caminho, chama-lhe o que quiseres.

Por detrás das árvores, ao poente, é como se um grande fogo
ardesse entre duas montanhas
 de tal modo que a neve do mais alto precipício
parece, por momentos, arder também.

Escuta: no fim do caminho, o homem chama.
A voz dele faz-se agora muito estranha,
é a voz de alguém a chamar o que não vê.

Ele chama, uma e outra vez, entre os castanheiros escuros.
E o animal responde por fim,
indistintamente, de uma enorme distância,
como se isso que tememos
não fosse terrível.

Crepúsculo: o estranho desamarrou o cavalo.

O som do mar –
Agora uma lembrança apenas.



louise glück
paisagem
tradução de rui pires cabral
telhados de vidro
nr. 12 maio 2009
averno
2009




30 outubro 2014

antero de quental / sonho oriental



Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha...

O aroma da magnólia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente...
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com umas finas ondas de escumilha...

E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto num cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descansas debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.



antero de quental
sonetos




29 outubro 2014

jean genet / caíndo



     Caindo,
     mereces a mais convencional das orações fúnebres:
     charco de ouro e sangue, mangal onde o sol poente...
     Mais do que isto não esperes.
     O Circo é todas as convenções

     Quanto à chegada,
     teme na pista o andar pretensioso. Entras:
     é logo uma série de pulos, saltos mortais, piruetas,
     rodas que vão levar-te ao pé da máquina
     para onde sobes a dançar.

     Que o frémito dos teus saltos — preparado já nos bastidores — nos revele
     que havemos de ir de maravilha em maravilha.

     E dança!

     Mas teso.
     O teu corpo terá um vigor arrogante de sexo congestionado,
     de sexo irritado.
     Por isso te aconselhava há pouco
     a dançares perante a tua imagem e te apaixonares por ela.
     Não te reprimas: quem dança é Narciso.
     Dança que é só tentativa do corpo em se identificar
     com a tua imagem, como o espectador o sente.
     Não és apenas perfeição mecânica e harmoniosa:
     evola-se de ti um calor que nos aquece.
     O teu ventre queima. Ainda assim
     não deves dançar para nós: dança para ti.

     Não viemos ao Circo ver uma puta,
     mas um amante solitário em busca da sua própria imagem
     que foge e desmaia num arame.
     Sempre num país de inferno. Uma solidão assim
     é que vai fascinar-nos.



          (...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984




28 outubro 2014

vittorio sereni / aqui estão os abismos e os amigos




Aqui estão os abismos e os amigos
estão tão distantes
que um grito é menos
que um murmúrio a chamá-los.
Mas sobre os anos volta
o teu sorriso limpo e fatal
semelhante ao lago
que arrasta pessoas e barcos
mas que enche de cor as nossas manhãs.



vittorio sereni
frontiera
edizione di corrente
milano 1941


(versão de stefano cortese e gil t. sousa)





27 outubro 2014

mário cesariny / ode doméstica



tudo no teu sorriso diz
que só te falta um pretexto
para seres feliz

uma querela talvez chegasse
ou um pequeno pastor que passasse
na estrada, com suas ovelhas

um riso, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor

eu
vou pensando em coisas velhas
- sem sombra de desdém! -
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem

e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado

e declina, o dia

o pequeno pastor já não vem




mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981




26 outubro 2014

fernando jácome de castro tavares rodrigues / as time goes by



Como o tempo passa
Enquanto ficamos sós...
Passamos nós pelo tempo
Ou passa o tempo por nós?
Bebamos os dois á taça
O que afinal sou eu só
- ambígua raiva, duelo,
dualidade num só.

  


fernando jácome de castro tavares rodrigues





25 outubro 2014

álvaro de campos / tabacaria



  Não sou nada.
  Nunca serei nada.
  Não posso querer ser nada.
  À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

  Janelas do meu quarto,
  Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
  Quem é
  (E se soubessem quem é, o que saberiam?),

  Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
  gente,
  Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
  Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
  Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
  Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos
  homens,
  Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
  nada.

  Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
  Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
  E não tivesse mais irmandade com as coisas
  Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

  A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
  De dentro da minha cabeça,
  E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

  Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
  Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
  À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora.
  E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

  Falhei em tudo.
  Como não fiz propósito nenhum talvez tudo fosse nada.
  A aprendizagem que me deram,
  Desci pela janela das traseiras da casa.
  Fui até ao campo com grandes propósitos.
  Mas lá encontrei só ervas e árvores,
  E quando havia gente era igual à outra.
  Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
  Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
  Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
  E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver
  tantos!
  Génio? neste momento
  Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
  E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
  Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
  Não, não creio em mim.
  Em todos os manicómios há doidos malucos com tanta certezas!
  Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
  certo?
  Não, nem em mim...
  Em quantas mansardas e não mansardas do mundo
  Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
  Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
  Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
  E quem sabe se realizáveis,
  Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
  O mundo é para quem nasce para o conquistar
  E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha
  razão.
  Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
  Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que
  Cristo,
  Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
  Mas sou, e talvez serei sempre o da mansarda,
  Ainda que não more nela;
  Serei sempre o que não nasceu para isso;
  Serei sempre só o que tinha qualidades;
  Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
  uma parede sem porta,
  E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
  E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
  Crer em mim? Não, nem em nada.
  Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
  O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
  E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
  Escravos cardíacos das estrelas,
  Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
  Mas acordamos e ele é opaco,
  Levantamo-nos e ele é alheio,
  Saímos de casa e ele é terra inteira,
  Mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido.
  (Come chocolates, pequena;
  Come chocolates!
  Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
  Olha que as religiões todas não ensinam mais do que a
  confeitaria.
  Come, pequena suja, come!
  Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
  comes!
  Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de
  estanho,
  Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

  Mas ao menos fica a amargura do que nunca serei
  A caligrafia rápida destes versos,
  Pórtico partido para o Impossível.
  Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
  Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
  A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
  E fico em casa sem camisa.
  (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
  Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
  Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
  Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
  Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
  Ou cocote célebre do tempo de nossos pais,
  Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -,
  Meu coração é um balde despejado.
  Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
  A mim mesmo e não encontro nada.
  Chego a janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
  Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
  Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
  Vejo os cães que também existem,
  E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
  E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

  Vivi, estudei, amei e até cri,
  E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
  Olho a cada um dos andrajos e as chagas e a mentira,
  E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
  nem cresses
  (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
  nada disso);
  Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
  cortaram o rabo
  E que é o rabo para aquém do lagarto remexidamente.

  Fiz de mim o que não soube,
  E o que podia fazer de mim não o fiz.
  O dominó que vesti era errado.
  Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
  perdi-me.
  Estava pegada à cara.
  Quando a tirei e me vi ao espelho.
  Já tinha envelhecido.
  Estava bêbado, Já não sabia vestir o dominó que não tinha
  tirado.
  Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
  Como um cão tolerado pela gerência
  Por ser inofensivo
  E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

  Essência musical dos meus versos inúteis,
  Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
  E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
  Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
  Como um tapete em que bêbado tropeça
  Ou um capacho que os ciganos roubam e não valia nada.

  Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
  Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
  E com o desconforto da alma mal-entendendo.
  Ele morrerá e eu morrerei.
  Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
  A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
  Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
  E a língua em que foram escritos os versos.
  Morrerá depois o planeta girante em que tudo isso se deu.
  Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como
  gente
  Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
  coisas como tabuletas,
  Sempre uma coisa defronte da outra,
  Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
  Sempre o impossível tão estúpido como o real,
  Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério
  da superfície,
  Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

  Mas um homem entrou na Tabacaria (pra comprar tabaco?)
  E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
  Semiergo-me energético, convencido, humano,
  E vou tencionar escrever estes versos em que digo o
  contrário.

  Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
  E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
  Sigo o fumo como uma rota própria,
  E gozo, num momento sensitivo e competente,
  A libertação de todas as especulações
  E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
  estar mal disposto.

  Depois deito-me para trás na cadeira
  E continuo fumando.
  Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

  (Se eu casasse com a filha de minha lavadeira
  Talvez fosse feliz.)

  Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
  O homem saiu da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das
  calças?).
  Ah conheço-o, é o Esteves sem metafísica.
  (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
  Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu me.
  Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus é Esteves!, e o universo
  Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da
  Tabacaria Sorriu.



  álvaro de campos