27 abril 2012

antónio josé forte / libertação





Descerão por paredes sangrentas
e subirão do asfalto
ganindo com um prego na língua
com os pulsos atados às patas
sobre pulmões raivosos em barcos de esterco
e não olharão nem para baixo nem para o alto
mas para a frente
para o horizonte de fatias vermelhas
e para trás
para os afogados sem mar sem terra natal sem paisagens marinhas
cada um com um buraco em seu peito
esguichando palavras estridentes
descerão atravessando gargantas
e subirão pela espinha a golpes de jejum
descerão empurrando palavras
transportando-as ao pescoço como cintos de salvação
abrindo crateras nas cabeças queridas
e olhos nos olhos dos aflitos
subirão do asfalto
transparentes e feridos
com os olhos nas mãos
a cabeça no sangue
chegarão aos pares ligados pela boca
com um estandarte negro seguro nos dentes
e descerão sempre cada vez mais e cada vez de mais alto
até chegar à orla do inferno chorarem as últimas lágrimas e par-
                                                                     [  tirem de vez.





antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958





26 abril 2012

ángel campos pámpano / a lição






que eu não esqueça nunca
a 1uz que me ensinaste

a que ascendia do fundo
da tua antiga inocência
e transbordava
o espaço colocado
entre tuas coisas e as minhas

que nunca esqueça
certas palavras tuas
que falavam da tua gente
dos dias de cinema
do pai
da guerra
de duas mulheres sozinhas tanto tempo

é essa zona intacta da tua voz
onde não chego
tua presença e a minha
o mundo que respiras
o desse menino
sentado entre as pedras 
atentos os seus olhos
ao brilho dos teus olhos

hoje a tua voz contida
une-me mais
às palavras que não percebo

a leve passagem da tua voz
fura o ar e vibra
expande-se
mais aquém da luz que antecede
o rosto dessa infância sem testemunhas

emudecia sempre quando menino

porém se tu falavas nascia outro silêncio





ángel campos pámpano
traduçáo de antónio cândido franco
diversos nr. 15
2009

25 abril 2012

Sempre!

O 25 de Abril tem autores e tem dono: fomos nós e é nosso. Sempre!



sophia de mello breyner andresen / como uma flor vermelha






À sua passagem a noite é vermelha
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.





sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999




sempre!


24 abril 2012

joão rui de sousa / a hipérbole na cidade





… … …
Rossio. Rossio mil e um, mil e dois, mil e três...
Rossio multímoda da Lisboa-viela.
Lisboa aquecida. Lisboa despida.
Lisboa-viagem numa caravela.

Barcos de papel à tona d’água.
Cestos de papel à vista, flor.
Papel nos bolsos, papel nas arcas.
Papéis-meninas a vender amor.

Polícia artefacto (vendedor vem comigo).
Relógio partido (parado ou não).
Rodelas de ginja encantada e um vidro
(Estão todos bebidos, caídos, perdidos,
irmão).

Gravatas sem vida (baratas, presentes).
Marinheiro por detrás (redondo, redondo).
Magalas com sorte, magalas doentes.
Galegos despidos na frente do mundo.

Rossio. Proibido parar, proibido avançar.
Proibido fugir, proibido fumar.
Proibido sorrir proibido olhar.
Proibido cantar,
                       proibido cantar.

          *

Sou pobre. Medito em tudo a meu modo,
Medito em porto (tecido, conteúdo).
Medito em seios (sabor e olfacto).
Medito em tudo.

Há europas desnudas espalhadas por coxas.
Há repúblicas doridas a pernoitar.
Há montanhas já fartas dos prazeres iníquos.
Há rios imaginários do amor do universo.

Geográfica e nossa é a condição de pobres.
Sobretudo em Rossio, Rossio mil e três.
 Com sorrisos nos lábios e letreiros às costas,
cantando alegremente:
                                 Estamos nus e gramamos.

Total a iniquidade de que estamos seguros.
Total a recompensa de mijo e areia.
Total o que somos, total o que fomos.
Total de pensarmos silêncio e candeia.
Total de mistela e de vão sacramento.
Total de miséria que um verme constrói.
Totais Descobertas... Eles lá o sabiam
explicar, se pudessem, como isso foi.

Rossio, meu amigo,
meu doidamente doido pelo chão.
Cais de Sodré vem comigo
Decifrar-me a canção:

Mil e dois, mil e três.
Mil e dois, mil e três.

… … …
A fome é uma mistura de carne
(pedras negras, .pedras brancas).
Desenhos? O tempo os desfaz.
Pombal restaurou. Pombal afinou.
Só não acabou o medo deste século.

Lisboa — a grande nau que não havia
no pensarmos sermos o que somos:
uma onda e outra sobre a outra onda,
feitas, de mil olhos, serpentinas.

Lisboa ou claro Tejo da ilusão.
(Funileiro à porta ou estar sentado.)
Somos o que somos: podres e serenos
na serena paz de fracassados.

Se os sinos da tua aldeia — Largo
de S. Carlos — falassem outra vez,
como diriam hoje agora:
Rossio mil e três?

Serrano e impossível.
Severo e impotente.
Cansado, impassível
grão podre
doente.

          *

Envelope aceso para enviar notícias,
novas muito antigas deste tempo.
Capitão viaja. Comandante à âncora.
Viva a morte, a noite e o desespero.

São estas as cordas de um cartaz turístico.
São estas as luzes dum assassinado.
Estrangeiro acena. E canta e grita:
Pobre noite, camarada.
… … …

Temos de coabitar.
O sonho dilata-se no sonho.
Ficaremos pobres como dantes?
Ficaremos cegos?

Estrangulem-me se quiserem.





joão rui de sousa
a hipérbole na cidade
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002




este mês de abril


23 abril 2012

josé emílio pacheco / alta traição






Não amo a minha pátria.
O seu fulgor abstracto
não se deixa agarrar.
Mas (ainda que soe mal)
daria a vida
por dez lugares seus,
certa gente,
portos, bosques, desertos, fortalezas,
uma cidade desfeita, cinzenta, monstruosa,
várias figuras da sua história,
montanhas
- e três ou quatro rios.





josé emílio pacheco
tarde o temprano (poemas 1958-2000)
fondo de cultura económica
edição de ana clavel, 3ª edição
picacho-ajusco
2004


(versão de luís filipe parrado




22 abril 2012

benjamin péret / a desonra dos poetas



  
[…] O poeta luta contra toda a espécie de opressão: em primeiro lugar a do homem pelo homem e a opressão do seu pensamento pelos dogmas religiosos, filosóficos ou sociais. Ele luta para que o homem atinja definitivamente um conhecimento perfectível de si próprio e do Universo. Não se conclua disto que o poeta deseja pôr a sua poesia ao serviço de uma acção política, mesmo revolucionária. Mas a sua qualidade de poeta faz dele um revolucionário que deve combater em todos os terrenos: no da poesia pelos meios que a esta são idóneos e no terreno da acção social sem jamais confundir os dois campos de acção, sob pena de estabelecer a confusão que importa dissipar e, por conseguinte, de deixar de ser poeta, isto é, revolucionário.




benjamin péret
a desonra dos poetas
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002



21 abril 2012

paula almada-negreiros / canção





Longe, muito longe onde as minhas mãos serão cúpulas para
                                                              [abrigar corujas
onde meus olhos asas de águia para abrir livros antigos
onde meus braços serão novas árvores daqui a
milhões de anos para uma nova floresta virgem

onde minha cabeça será o campanário duma igreja aldeã
antiquíssima para os homens do centésimo vigésimo quinto
                                                    [século depois de mim
onde minha boca será a gruta do lado de fora da Terra
                                                   [do lado de dentro do mar
onde se esconderão traineiras navegadas por sereias
de meus braços algas do princípio do mundo

onde minha cama será o barco para navegar em toda a Terra
                                                                         [cinzenta
com dunas que taparão árvores de deserto
onde num mundo em que EU se diz ALFABETO NÚMERO
                               asteróide com um número
incapaz de se ler






paula almada-negreiros
ângulo poente
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002



20 abril 2012

gil t. sousa / não saber


  

50

todas as noites não saber

em que hora parar
em que degrau de sombra

largar o recado para o nada

que nos queima
as mãos




gil t. sousa
falso lugar
2004





19 abril 2012

dórdio guimarães / guerra e civilização




  
II

revolver o sangue até a língua ser revólver
revirar os olhos com endereço revoltar a lua
revelar em fotograma ao retardador o céu
rodopiar em árvore um réquiem solar
revoar em ave a rápice aventura
revolver o universo no rito de morrer

redigo refazer reunir recomeçar
(remorso foi não amar de mais) repercutir
ah grande organista é a flor





dórdio guimarães
a idade dos lilases
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002


18 abril 2012

eugénio de andrade / somos folhas breves onde dormem





Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.




eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000