10 dezembro 2007

cães com nome




Não sei quem te perdeu
se eu se outro alguém
— oiço cães velhos
a ladrar lá fora,
os mesmos cães de sempre
que tu também ouvias
abafadamente pela janela,
com o teu ponto cruz
as minhas telas
os nossos filmes e CDs,
a nossa casa,
o nosso lar,
os nossos cães




damien sevhac



05 dezembro 2007

andrei tarkovsky / os primeiros encontros






cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.









arsenii tarkovskii8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




fathom









thomas allen
fathom 2006





02 dezembro 2007

ana merino / carta de um náufrago





Com o consentimento da neve
caminharei devagar.
Alguém haverá à espera junto do fogo
e eu, que estarei cega pelo frio,
farei paragens breves,
sacudirei o guarda-chuva e começarei de novo.
O único segredo é não sentir-se
imensamente cheio de verdades.
Não aceitar nunca os convites
que o nevoeiro
sugere ao fazer ninho com os seus disfarces
de paisagem feliz, de grandes sonhos.
Alguém haverá que diga, perdeu-se,
alguém sairá a procurar-me,
e levará o calor de uma garrafa
onde poderei mandar-te esta mensagem.




ana merino
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




27 novembro 2007

solidão de papel




não me fales mais
dessa solidão de papel

eu ainda tenho a sede das oliveiras
a paciente sede
dos rios que nunca chegam
dos rios avistados
que não se podem tocar

eu ainda tenho a dor da terra queimada
a fortíssima dor
das chuvas que não voltam
das raízes que morrem
sem poder gritar

o teu nada
é só mais um perfume!

e eu
eu tenho sangue na voz
tenho no peito o grito do lobo
a imensa tristeza de uma lua
que o céu não quis






gil t. sousa
poemas
2001





25 novembro 2007

se numa noite de inverno um viajante




(…)

Quantas vezes,
ao notar que o meu passado começava a pesar-me,
que havia muita gente que pensava ter um crédito para comigo,
material e moralmente,
quantas vezes,
quando o passado me pesava de mais,
tivera a esperança de cortar tudo pela raiz:
mudar de ofício, de mulher, de cidade, de continente
— um continente a seguir ao outro até dar a volta completa —,
de costumes, de amigos, de negócios, de clientela.

Era um erro,
quando percebi era tarde.
Porque deste modo
não fiz senão acumular passados sobre passados
atrás das costas,
multiplicá-los,
aos passados,
e se uma vida me parecia já demasiado cheia
e ramificada e enredada para andar sempre com ela,
imagine-se muitas vidas,
cada uma com o seu passado
e com os passados das outras vidas
que continuam a ligar--se uns aos outros.

Não servia de nada dizer às vezes:
que alívio, ponho o conta-quilómetros a zero,
passo a esponja pelo quadro:
no dia a seguir ao da chegada a um país novo,
já este zero se tornara um número com tantos algarismos
que já não cabia no contador,
que ocupava o quadro de uma ponta à outra,
pessoas, lugares, simpatias, antipatias, passos em falso.

(…)






italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço
barreiros
(grafia adaptada)
publico
2002





21 novembro 2007

alejandra pizarnik / festa




Desdobrei a minha orfandade
sobre a mesa, como um mapa.
Desenhei o meu itinerário
até ao meu lugar ao vento.
Os que chegam não me encontram.
Os que espero não existem.

E bebi licores furiosos
para transmutar os rostos
num anjo, em copos vazios.








alejandra pizarnikantologia poética

trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002







17 novembro 2007

todas las madres del campo






Todas las madres del campo,
con el dios de lo sencillo,
han vivido trabajando
como el que empuja la tierra
en el olvido del tiempo
sin tener más paz que pena.



Son vientres, sobreesfuerzos
que entre el destino ruedan
por misteriosos azules
alzando besos a ciegas;
fértiles melancolías
enlizadas de belleza
ganando amor por hijo
como fieras fortalezas
que no atravesará el frío
ni subrepticios de guerras.



Cantan a la sombra extraña
un día, con ansia eterna
y hasta con la voz lejana,
para retar a su fuerza;
colmadas de luz por cándidas,
colmadas de miel por tiernas
irán regalando vidas
-al par que las ven estrellas-
por todos los nuevos sitios
en donde la noche espera.



Son musas de la verdad,
del hambre a su sur abierta
diciendo al viento: "Estamos
jurándote la miseria".



Pero, sangre a sangre, alma
a alma, se recuperan
y no maldicen al cielo
ni a la fe que las entierra.








Oswaldo ROSES





12 novembro 2007

este coração devoluto




Conforta-me saber agora
que um dia, não sei bem quando,
terei quem me limpe o granito polido
de folhas velhas e de pó
e talvez me sinta
numa árvore próxima,
num fruto,
numa erva,
e de par em par
formando um elo,
a presença de alguém
que foi sem saber ser,
que perdeu nos dedos os porquês
e amor,
alguém viveu, amor,
alguém sorriu, amor,
alguém se fumou até à morte,
alguém se pensou até à morte,
se debateu de mais até à morte
sobre o sentido das pegadas nestes trilhos
traçando no chão o seu caminho
sem traçar o seu destino.
E amor,
este coração devoluto
deu guarida a sem-abrigo em excesso,
que serviu de garagem e armazém,
de hotel e pensão rasca,
de cabide e asilo, de casa de alterne
e solar de ricos
é agora um sanatório
abandonando-se a si mesmo
no desgaste de dois murmúrios.
Mas amor, olha-me nos olhos
e não chores,
evita que os teus joelhos
sangrem sobre a pedra que me cubra
e sente-me no verde de qualquer musgo
e anda para a frente e sê feliz
tem filhos e filhas e escreve um livro
sobe à tua serra e corre e grita
e sente o eco dos teus gritos,
amor,
não te abandones assim, ao Deus-dará,
não te abandones assim sem sentido
nessa tristeza,
porque amor,
neste coração devoluto
uma morada
uma casa branca
um fruto.




w.d. sevahc





07 novembro 2007

instante




o céu
é a parte mais venenosa do olhar

é um vício inútil
como uma ideia

e leva-me os dias
numa suave cegueira
para os largar
em lugares impossíveis

mais raros
do que o próprio azul
com que me esmaga
de encontro
a
este instante





gil t. sousa
poemas
2001



05 novembro 2007

esta mão que escreve a ardente melancolia





(a carta da paixão)



Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.











herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002





teresa gil





teresa gil
apanhei-te
acrílico s/tela
100 x 130 cm



xiv bienal de vila nova de cerveira



04 novembro 2007

mas que sei eu







Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha








ruy belo
todos os poemas II
assírio & alvim
2004