05 abril 2006

book zapping #006 roland barthes


O ROSTO DE GARBO

Garbo pertence ainda a essa fase do cinema em que a percepção do rosto humano lançava a maior perturbação no meio das multidões, em que as pessoas se sentiam literalmente perdidas numa imagem humana como num filtro, em que o rosto constituía uma espécie de estado absoluto da carne, que não podia ser atingido nem abandonado. Alguns anos antes, o rosto de Valentino provoca suicídios; o de Garbo participa ainda do mesmo reinado do amor cortês, em que a carne gera sentimentos místicos de perdição.
Trata-se, indubitavelmente, de um admirável rosto-objecto; na Rainha Cristina, filme que foi reposto em Paris nos últimos anos, a caracterização tem a espessura de uma camada de neve, como se fosse uma máscara; não é um rosto pintado, é um rosto de gesso, defendido pela superfície da cor e não pelas suas linhas; por sobre toda esta neve ao mesmo tempo frágil e compacta, só os olhos, negros como uma polpa bizarra, mas de maneira nenhuma expressivos, são como duas nódoas um pouco trémulas. Mesmo em toda a sua extrema beleza, esta face, que não é desenhada, mas antes esculpida numa matéria lisa e esfarelável, o que quer dizer que é simultaneamente perfeita e efémera, aproxima-se da face enfarinhada de Charlot, dos seus olhos de vegetal sombrio, do seu rosto de tóteme.
Ora, a tentação da máscara total (a máscara antiga, por exemplo) implica talvez não tanto o tema do oculto (caso das mascarilhas italianas) como o de um arquétipo do rosto humano. Garbo dava a ver uma espécie de ideia platónica da criatura, e é isso que explica que o seu rosto seja quase assexuado, sem todavia ser ambíguo. Ë verdade que o filme se presta a essa indeterminação (a rainha é sucessivamente uma mulher e um jovem cavaleiro); mas a Garbo não realiza nenhuma proeza de disfarce; ela é sempre igual a si mesma, ostentando sem fingimento, debaixo da coroa ou dos seus grandes chapéus de feltro de abas caídas, o mesmo rosto de neve e de solidão. O seu apelido de Divina visava, sem dúvida, menos a expressão de um estado superlativo da beleza do que a essência dia sua pessoa corpórea, caída de um céu em que as coisas são criadas e acabadas na maior das claridades. Ela própria tinha consciência disso: quantas actrizes consentiram em deixar entrever à multidão o amadurecimento inquietante da sua beleza! Ela, não: era preciso que a sua essência se não degradasse, que o seu rosto não conhecesse nunca outra realidade além da perfeição intelectual, mais ainda do que plástica. A Essência foi-se obscurecendo pouco a pouco, progressivamente recoberta pelo véu dos óculos, dos chapéus e dos exílios; mas não se alterou nunca.
E, contudo, sobre este rosto divinizado, algo de mais agudo do que uma máscara se desenha: uma espécie de relação voluntária, e portanto humana, entre a curva das narinas e a arcada das sobrancelhas, uma função pouco vulgar, individual, entre essas duas zonas da face; a máscara não é senão a adição das linhas, o rosto é antes de mais uma referência temática de umas às outras. O rosto da Garbo representa esse momento frágil em que o cinema vai extrair de uma beleza essencial uma beleza existencial, em que o arquétipo vai ser inflectido para a fascinação dos rostos transitórios, em que a claridade das essências carnais vai dar lugar a uma lírica da mulher.
Enquanto momento de transição, o rosto da Garbo concilia duas idades iconográficas, assegura a passagem do terror ao encanto. Como se sabe, encontramo-nos hoje no outro pólo desta evolução: o rosto de Audrey Hepburn, por exemplo, é individualizado, não só pela sua temática particular (a mulher infantil, a mulher felina), mas também pela sua própria pessoa, por uma especificação quase única do rosto, que nada mais tem de essencial, mas é constituído por uma complexidade infinita de funções morfológicas. Como linguagem, a singularidade da Garbo era de natureza conceptual, a de Audrey Hepburn de natureza substancial, O rosto da Garbo é a incarnação da Ideia, o de Hepburn a do Acontecimento.



Mitologias
Roland Barthes
Edições 70
1988

02 abril 2006

post it / tiago alexandre correia

OS AMANTES COM DINHEIRO


Tinham o portão fechado a quem passava.
Tinham salas com brasões
e aquecimento central na mansão.
Tinham jardins onde a lua repousava
nos estofos da limousine
e um banqueiro rico por irmão.
*
Tinham como todos da espécie
o milagre da multiplicação do Euro
engordando nas contas;
e olhos de cifrão
onde ardiam
as megalomanias mais pomposas.
*
Tinham fartura e gula como os abades,
e silêncio
à roda dos seus chás,
mas a cada telefonema que faziam
um ministro caía
e deslumbrados penetravam nos lobbys.



tiago alexandre belejo correia



(poema/homenagem a Eugénio de Andrade, enviado pelo Tiago no dia da morte do poeta)

31 março 2006

estações

4)

crítica & amiguismo


Não, não é o gráfico da rede de “amiguismo”: é o desenho de um neurónio feito por Ramón y Cajal.

30 março 2006

post it / nuno travanca

sem título


na extensão imanente dos teus púberes dedos
outra linguagem
centelha apertada no corpo
desfeita pela lonjura das sombras


a letra levada a extremos
holograma da pele
investido em ângulos mais fracos
cada vez mais fracos


um prelúdio de esquecimento
gestação fúnebre do instante


o semblante do lugar
em puro desfasamento
afastado da luxúria
ao encontro da rugosidade do papel


dedos púberes e incompletos
registo óbvio da gnose
da leviandade
do próximo raio de tinta


o corpo
conteúdo da brevidade escutada


a centelha a desabrochar
no toque.



nuno travanca

28 março 2006

estações

3)


"28 de Outubro (1935)

A poesia começa quando um idiota diz, a respeito do mar: «Parece azeite.» Não é, de facto, uma descrição exacta de um mar bonançoso, mas o prazer de ter descoberto a semelhança, a exactidão de um liame misterioso, a necessidade de se gritar aos quatro ventos que de tal nos apercebemos.
No entanto, é igualmente idiota determo-nos aqui. Começada assim a poesia, é preciso terminá-la e compor uma narrativa rica de nexos e que equivalha a um juízo de valor.
Esta seria a poesia-tipo, a ideia. Mas, habitualmente, as obras são feitas de sentimentos — a exacta descrição da bonança — que, de vez em quando, espumejam em descobertas de relações. Pode ser que a poesia-tipo seja irreal e que — tal como nós vivemos também de micróbios — o que até agora foi feito seja constituído por simples pedaços miméticos (sentimento), por pensamentos (lógica) e por nexos mal esboçados (poesia). Uma combinação mais absoluta seria talvez irrespirável e idiota. "



Cesare Pavese
O ofício de Viver
Diário (1935-1950)
Trad. Alfredo Amorim
Relógio d’ água
2004

27 março 2006

post it / alexandre moreira

poema 15 ou 18



Não há homem verdadeiramente sozinho de
coração a esquecer a parecer
idiota com banco e negras
forma salto finalmente
o pálido o alemão com passo com porta
os momentos que se apoderam
há momentos que se apoderam nada mais se
move na sala de fumo conversas de
peito indignado a mover-se na sala de fumo um rapaz
muito bem talvez um rapaz discretamente envolvente
bem talvez envolvente
dois retratos a negociar-nos de chapéu alto de chapéu
alto se dorme suavemente
e as mãos as mãos as mãos são pouco sacrifício agora
de murmúrio diluído em receio se
é delicioso se há momentos que se apoderam do
mar ao longe a face a declarar guerra branca como
interior do vidro como troçar de nós mesmos um
minuto destes será quase vazio será
todo à beira desta cama não ouso
este pequeno papel espera não estou longe morrer
é afinal um dia bonito imóvel de vez até lá domir
comer tomei banho até lá que é afinal imóvel de vez até lá
até sempre
ter o sol todo coisa teatral por baixo lisboa
e eu nesta rua branca a vislumbrar um aborrecimento inteiro.



alexandre moreira

26 março 2006

um poema de: pier paolo pasolini


A UM PAPA


Poucos dias antes de morreres, a morte
pousou os olhos em alguém da tua idade:
aos vinte anos, tu estudavas, ele era pedreiro,
tu, nobre, rico, ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma, voltando a dar-lhe a sua juventude.
Vi os seus despojos, pobre Zucchetto.
Andava de noite, bêbado, à volta dos Mercados,
e um eléctrico que vinha de San Paolo atropelou-o
e arrastou-o por uns metros de carris no meio dos plátanos:
durante umas horas ficou ali, sob o rodado:
poucas pessoas se juntaram em redor, olhando-o,
em silêncio: já era tarde, havia pouca gente.
Um dos homens que existem para que tu existas,
um velho polícia, desbocado como todos os patifes,
gritava aos que se aproximavam mais: «Larguem-lhe os colhões!»
Depois veio uma ambulância buscá-lo:
as pessoas desapareceram, só ficaram uns grupos aqui e acolá,
e, mais à frente, a dona de um cabaré,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto tinha ficado debaixo de um eléctrico, que estava morto.
Poucos dias depois, morrias tu: Zucchetto era um
dos do teu grande rebanho romano e humano,
um pobre bêbado, sem família nem leito,
que andava de noite, vivendo ao deus-dará.
Tu ignoravas: como ignoravas
outros milhares e milhares de cristos como ele.
Talvez seja cruel ao perguntar por que razão
a gente como Zucchetto é indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem na poeira antiga, na lama de outras eras.
Não muito longe de onde tu viveste,
à vista da bela cúpula de San Pietro,
fica um desses lugares, o Gelsomino...
Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e no sopé,
entre um charco e uma fieira de prédios novos,
um montão de tugúrios miseráveis, não casas mas pocilgas.
Bastava um gesto teu, uma palavra,
para esses teus filhos terem uma casa:
nunca fizeste um gesto, nunca disseste uma palavra.
Ninguém te pedia que perdoasses Marx! Uma vaga
imensa que irrompe sobre milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas não se fala, na tua religião, de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu sabias que pecar não é fazer o mal:
não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.
Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste:
não houve quem mais pecasse do que tu.




poemas
pier paolo pasolini
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005


22 março 2006

post it / luís melo


[ Coiso! ]




... Tão baralhado
tão cheio de bicos
para cima
e para baixo.
A bússola maluca
a rodopiar desatinos;
o sol a sul
anti-magnético
desnorteado;
espectros
esvoaçantes
não identificados.
Vogar à deriva
sem radar:
algures a plenitude
no arco ogival
a basílica
vertigem gótica
naves laterais
de inexistência
e vacuidade;
Ah, a promenade,
a nave central
com declive
a tender
para o confuso
e infinito
do alfa à morte
do ómega ao parto.

Vagamente...
marcial um Viva-se !
Pois!
...Vagamente !
uma missão
logo à partida
inconclu-ida
inconclu-sivel
inconclu-dente
inconclu-coisa-nenhuma
de uma longa
e vaga
sim sim sim ... vaga
caminhada
até aqui
e a sê-lo
de ser onda
do meu mar
mural de história
pouco nada
ante-projecto
de desespero!
Sem sentido
salgado
(e como é obvio,...)
... vaga _ mente
escorrer por fora
de um globo ocular
ou... ser lágrima !




luís melo

20 março 2006

post it / l. maltez

no bater das portas


entrei no lado azul da noite
em silêncio pesado

tropecei na verde porta
com palavras embrionárias

flui da obscuridade
sem nome de gente

empurrei o verão
esquecida, na inocência do tempo
do lado de lá, disseminei aromas
na magia dos ventos desabridos

rostos sedentos,
aterrados,
suspirantes no sossego
duma noite, sem paisagem
transpirada de azul

voraz passa incandescente
a idade louca de um tempo


l.maltez




19 março 2006

post it / rui martins

eclipse


há um piano a tocar(te) no quarto.
Fixas os olhos em mim e deixas o tempo passar
atrasando as horas
negando beijos
adormecendo na minha mão, todos os dias mais um pouco.
[Amo-te porque existo]

Sopro água nesse rosto
conto as gotas e adormeço no banco das tuas mãos transparentes.

Flutuas sobre a cama na força que drenas do corpo tocado Existes eternamente nua em cada marca que os meus lábios deixaram [em cada regresso] Com um gesto fechas os olhos, dás-me outro mundo, guardando-me dentro de ti como fazes aos segredos.

PS - Conservo os teus mamilos em absinto queimado, ainda me ardem na boca.



rui martins

17 março 2006

estações

2)


Sandro Botticelli, Birth of Venus (detail)



hoje,
o sopro dos anjos,
onde já nem a sombra
chegava.




gil t. sousa