11 maio 2016

rui diniz / argumento




Escrevi um longo conhecimento do desespero.
Um dia abri na noite as razões silenciosas.
Senti o cérebro torcer-se lentamente e depois
parar, toldado pelo esquecimento. E na amnésia,
entre alguns rios lisos de cores escuras, dias
e noites permaneci. Ao fim de alguns meses
recordei uma cidade, que um rio atravessava,
onde eu conhecera outrora todas as pessoas
destruídas pela sua própria vida e onde só
pessoas assim eu conhecera. Lembrei-me da
maneira estranha como tantas delas tinham
morrido. O alcoolismo era então uma enorme
razão. Alguns dos amigos fumavam marijuana.
O seu riso rachava o muro da noite e descobria,
para trás, lentos cemitérios onde o luar
tingia. Os livros consumiam-me os olhos e
a cabeça doía-me. Pude assim lembrar-me
de ter escrito poemas sobre a doença de
imensa gente, uma espécie de febre, ou uma
coragem constantemente estrangulada, um
último oferecimento do seu desejo à vertigem
e depois, uma manhã em que se sabia dos
suicídios.
Mortos, os seus dedos floresciam a penumbra
dos quartos, os seus lábios apodreciam já
sob poeira azulada, as praças inclinavam-se
uma vez mais como sítios de uma única
ternura. Os seus quartos estavam sempre cheios
de lixo quando os encontravam, e alguns
ainda sorriam daquilo que os tinha feito
dizer: amo-te e podemos tentar ser muito
felizes e depois, quando o desespero os elucidava:
amávamo-nos, poderíamos ter sido felizes.
Escrevi este longo conhecimento dos amigos
mortos e eu próprio escapei a uma noite
qualquer. Mas nesta amnésia de só algumas coisas
ainda mais permaneci.

Essa cidade e esses nomes dissolveu-os o
que pude lembrar: poentes nas esplanadas,
tomando aperitivos e rindo e vendo
a multidão descendo os espessos lugares.
Noites nos dancings ou nos quartos, fumando
a desolação, escrevendo poemas sobre ruínas
e vidas que se consumiam em abandonos
e viagens.
Tudo era estéril como a doença que nos
movia, de lugar para lugar, uma fome pura
e quase construída, uma indiferença que
compreendia tudo e os anos através das
caras e dos corpos e mais tarde o desalento
e estarmos vivos.

Escrevi sobre as tardes e a sua lenta solidão
e depois as vozes vindas através dos sítios
essa cidade em que esqueci o que poderia
escrever ainda, a minha recordação talvez
dos anos, nas bocas azuladas, no repouso
com sangue, com lentos sonhos dentro
dos olhos lívidos, com o último olhar de
esquecimento, o mais árido lugar,
a insuportável solidão.

E repeti dias e dias o desassossego. Os nomes
que poderia lembrar. A cidade com os seus
lugares de desespero o que me foi sendo
possível recordar. E neste desolado hospício,
hoje, vi todo o meu enlouquecimento – um
propósito de me lembrar de todas essas coisas
e o seu lento e doloroso sabor. Um
obsessivo crescer do sofrimento – maior amor.



rui diniz
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




10 maio 2016

marguerite yourcenar / os trinta e três nomes de deus


Tentativa de um diário sem datas e pronomes pessoais



1
Mar pela manhã 

2
Murmúrio da
nascente nas
rochas
sobre os muros de pedra 

3
Vento de mar
a noite,
sobre uma ilha 

4
Abelha 

5
Voo triangular
dos cisnes 

6
Cordeiro recém-nascido
formoso ariete
ovelha 

7
O terno focinho
da vaca
o focinho selvagem
do touro 

8
O focinho
paciente do
boi

9
O rubro fogo
na lareira 

10
O camelo
coxo
que atravessa a
grande cidade atravancada
a caminho da morte 

11
A erva
O odor da erva 

12
‘ ‘’’’’’

13
A boa terra
A areia
e a cinza 

14
A garça real que
esperou toda a
noite, quase gelada,
e pela aurora encontra
com que aplacar sua
fome 

15
O pequeno peixe
que agoniza
nas goelas da
garça real 

16
A mão,
que entra em
contacto
com as coisas 

17
A pele —
toda a superfície
do corpo 

18
O olhar
e o que ele vê 

19
As nove portas
da
percepção 

20
O torso
humano 

21
O som de uma
viola ou de uma
flauta indígena 

22
Um trago
de bebida
fresca ou
cálida 

23
O pão

24
As flores
que despontam
da terra
na primavera 

25
Sono
em um leito 

26
Um cego
que canta
e uma criança
enferma 

27
Cavalo que
corre
em liberdade 

28
A mulher —
os — cães 

29
Os camelos
que se banham
com seus filhotes
no difícil oued 

30
Sol nascente
sobre um lago
ainda meio
gelado

31
O relâmpago
silencioso
O trovão
fragoso 

32
O silêncio
entre dois amigos

33
A voz que vem
de levante,
entra pelo ouvido
direito
e ensina um canto 

  
22 de março 1982



marguerite yourcenar
os trinta e três nomes de deus
tradução de mário rui de oliveira



09 maio 2016

hans-ulrich treichel / recordação do pai



Batia com a esquerda,
por vezes cego de raiva.
A direita estilhaçada até ao ombro
num campo de batalha russo.

Quando chovia
a luva preta cheirava a cabedal
e doía-lhe o braço perdido.

Se estava de feição dava-nos dinheiro
e deixava-nos enfiar-lhe o elástico branco
pela manga da camisa.

Mais ainda que a força da sua esquerda
e os rompantes da sua ira
temíamos
a sua ternura sem jeito.

Talvez até o amássemos,
sentindo-lhe escondido o medo da solidão.
Mas acabávamos sempre a fugir-lhe.

Melhor me lembro
desse braço postiço
com a mão de couro preto
do que lembro o seu rosto.

Ainda estou a vê-la
imóvel na toalha branca,
ao lado do prato,
com a carne já cortada:

Incapaz de violência,
e de uma dependência inexprimível.




hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




08 maio 2016

nikolaï kantchev / ditadura



Tu, árvore de um só fruto, de um grão a semear,
dizias duas três vezes mas quem poderia ouvir:
o ribeiro não é nenhum trapaceiro
se for bem ouvido, sem o colocar sob escuta.

            A mochila do caçador deve ser
            sempre um ninho para pássaros,
            sempre um ninho para pássaros.
 
O sol viu colheitas mais douradas
e almas menos prateadas que as daqui:
nada de fraterno entre os  irmãos escritores...
Um dia encontrarei o dia que será mais que um dia.
 
            O pássaro que se mete num buraco de rato
            nunca se transformará em morcego,
            nunca se transformará em morcego.



nikolaï kantchev
poemas
tradução de egito gonçalves



07 maio 2016

manuel bandeira / a camões



Quando nalma pesar de tua raça
A névoa da apagada e vil tristeza,
Busque ela sempre a glória que não passa,
Em teu poema de heroísmo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça,
Te resumiste em ti toda a grandeza:
Poeta e soldado… Em ti brilhou sem jaça
O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente
Da estirpe  que em perigos sublimados
Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá, sem poetas nem soldados,
A língua que cantaste rudemente
As armas e os barões assinalados.


manuel bandeira
antologia poética
editora nova fronteira
2001



06 maio 2016

antónio pedro / maresia



Neste mar à minha frente
O sol repousa e os nossos olhos dormem…

– Caem saudades mortas como chuva miúda,
Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas,
Ou ficam, extáticas como um bafo de areia,
Calmas, sobre a paisagem,
Como um véu de cambraia deixado…

Não sei se é o calor das algas,
Se é o bafo da areia que baila,
Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol
Como um véu de cambraia deixado,

Sei que me lembram os signos do zodíaco
Em boa caligrafia,
Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!…

E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela,
Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior
Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia
Duma inconsciência que não se parece com nada,
Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante
Fazendo, lentas, e desfazendo
A mesma curva humaníssima e sensível,
Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino pequeno
Sobre o chão acamado, esta palavra

AMOR.


antónio pedro
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



05 maio 2016

fernando lemos / insónia



                                  à Manuela Pilar


O raio fulminou-me os berlindes
        agora invejo os olhos dos mortos
espreitando no telhado da missa
o caminho que seguem os porcos

Risco no céu com uma vara
nomes iguais a qualquer cão
Para a verdura dos séculos fica
uma mensagem de indignação

Os vivos têm berlindes
mas não os querem usar
Bolsos cheios
fatos de cerimónia pretos
nos seios rectos da criada de mamar

Na virgindade de que são feitas as gerações
a par das locomotivas quero
quebrar meus nervos na ânsia que me faz correr
vinagre nas feridas

Hei-de criar uma nova forma de cansaço
gemer a sorrir de medo
no arame que assobia
dançando larguras no espaço

Sabe bem ouvir o silêncio
e a morrer nele a cada instante
ficar na argola de guardanapo
guardado inconstante

Se quisesse que a alegria me desse
um modo simples de ser
não te ouviria no pêndulo que vem
às duas três horas bater

O pêndulo que acelera
vai e traz a tua voz
e morder me desespera
morder a imagem de nós

E acredito que amanhã
torne a ouvir mesmo os ruídos
entalado pelo sol pela noite
com casacos de ratos aos gritos




fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004




04 maio 2016

saint-john perse / anabase



I

     Estabelecendo-me com honra sobre três grandes estações, auguro bem do solo onde fundei minha lei.
     As armas na manhã são belas e o mar. e o sol não é sequer nomeado, mas o seu poder está entre nós
     e o mar na manhã como uma conjectura do espírito.

     Poder, tu cantavas nas nossas estradas nocturnas!... Nos idos puros da manhã que sabemos nós do sonho, nossa procedência?
     Por mais um ano entre vós! Senhor do grão, senhor do sal, e a coisa pública sobre justas balanças!
     Nunca chamarei por gentes doutra margem. Não traçarei nunca grandes
     bairros urbanos pelas encostas com o açúcar dos corais. Mas tenciono viver entre vós
     No limiar das tendas inteira glória! a minha força entre vós! e a ideia pura como um sal faz-se pública em pleno dia.

*

     … Pois eu frequentava a cidade dos vossos sonhos e decidia nos mercados desertos este puro comércio da minha alma, entre vós
     invisível e constante como lume de espinhos em pleno vento.
     Poder, tu cantavas nas nossas esplêndidas estradas!... «No deleite do sal estão as lanças do espírito… Com sal avivarei as bocas mortas de desejo!
     «Quem não louvou a sede bebendo por um casco a água das areias,
     «pouco crédito me merece no comércio da alma…» (E o sol não é sequer nomeado mas o seu poder está entre nós.)

     Homens, gente de poeira e de qualquer figura, gente de negócio e de lazer, gente vizinha e gente distante, ó gente de pouco peso na memória destes lugares; gente dos vales e dos planaltos e dos mais altos declives deste mundo ao expirar de nossas margens; farejam indícios, sementes e confessam desalentos a oeste; seguem pistas, estações, erguem tendas no vento leve da aurora; ó prospectores de pontos d´água na crosta do mundo; ó prospectores, ó inventores de razões para partir,
     não traficais um sal mais forte quando, pela manhã, num presságio de reinos e de águas mortas suspensas do alto sobre as brumas do mundo, os tambores do exílio despertam pelas fronteiras
     a eternidade que boceja sobre as areias.

*

     … De manto puro entre vós. por mais um ano ainda entre vós. «Por sobre os mares a minha glória; entre vós a minha força!
     Aos nossos destinos prometido este alento doutras margens e, levando mais longe as sementes do tempo, o clamor dum século sobre o seu cume no fiel das balanças…»
     Matemáticas suspensas nos bancos gelados do sal! No ponto sensível do um rosto onde o poema se estabelece, inscrevo este canto de todo um povo, o mais ébrio,
     tirando aos nossos estaleiros quilhas mortais!


saint-john perse
anabase
trad. josé daniel ribeiro
relógio d´água
1992




03 maio 2016

maria gabriela llansol / interiormente, o segredo traria uma grande claridade


145

Interiormente, o segredo traria uma grande claridade,
Se pudesse. Só por fora sendo obscuro, o seu escuro
Sem efeitos não transparece. A criança que ainda
Subsistia no construtor de calendários, por pirrice,
Não quis meditar sobre as consequências. O tempo,
Não. Mesmo que fosse o inverso nada se alteraria.
De qualquer modo, empurrando seus carrinhos de brincar,
Entraram em colisão. Não creio que seu problema fosse
De sensualidade. A dar uma opinião, diria que era mais
Uma das muitas sequelas do caminho, como outra
Qualquer fase de caminho que se visse, ao longe.
Do terreiro da contemplação.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003



02 maio 2016

charles bukowski / rapariga nas escadas rolantes



quando vou a entrar nas escadas rolantes
um jovem rapaz e uma adorável rapariga
posicionam-se à minha frente.
o vestido dela é bem justo ao corpo e
ao colocar um pé à frente e outro atrás, sobre as escadas
o traseiro dela assume os seus contornos
o rapaz olha para todo o lado, claramente inquieto.

ele olha para mim.
eu olho para outro lado qualquer.

não, rapaz, eu não estou a olhar
não estou a olhar para o traseiro da tua miúda.
não te preocupes, eu respeito-a a ela e respeito-te a ti.
na verdade, eu respeito tudo; as flores que crescem,
as jovens mulheres, as crianças, todos os animais,
o nosso precioso e complicado universo, tudo e todos.

o jovem sossega e eu fico contente por ele.
sei o seu problema: a miúda tem uma mãe e um pai e talvez um irmão
e sem dúvida uns quantos familiares e ela gosta de
dançar e flirtar e de ir ao cinema e por vezes ela mastiga
pastilha elástica e fala ao mesmo tempo e ela diverte-se com
programas de televisão completamente parvos e ela pensa
que é uma actriz e ela nem sempre está nos seus melhores dias
e ela tem um temperamento terrível e às vezes ela quase
fica doida e ela fala horas e horas ao telefone e ela quer ir
para a europa no verão e ela quer ter um mercedes
e ela está apaixonada pelo Mel Gibson.
e a mãe dela é uma cabra de uma bêbada e o pai
secretamente odeia pretos vermelhos e amarelos
e ela ressona e ela é muitas vezes fria na cama e ela
tem um guru, um tipo que conheceu cristo no deserto em 1998
e ela quer fazer skydive e ela está desempregada e ela
fica com dores de cabeça sempre que ingere açúcar ou queijo.

no cimo das escadas rolantes, vejo o rapaz a pôr
a sua protectora mão na anca dela
pensando que é um felizardo
pensando que é um "macho"
pensando que mais ninguém no mundo tem aquilo que ele tem.
e ele está certo, terrivelmente terrivelmente certo,
com o braço em volta daquele emplastro morno
de intestinos
bexiga,
rins,
pulmões,
sal,
enxofre,
dióxido de carbono
e
catarro.

lotsa
luck



charles bukowski
tradução de júlio mota



01 maio 2016

sophia de mello breyner andresen / primavera



Primavera que Maio viu passar
Num bosque de bailados e segredos
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
poesia I
caminho
1999



30 abril 2016

josep maria llompart / caminho da fonte



            homenagem a Pero Meogo



Sedentos veados
pelo pinheiral,
no bebedouro abriam-se
os montanhosos cumes.
Veados que bebiam
com focinhos trémulos.
A amiga chegava
buscando o amado:
pérolas orvalhavam
faces de coral.
Veados afastavam-se
no entardecer suave,
a água sussurrava
na sua solidão.



josep maria llompart
(palma de mallorca, 1925)
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994



29 abril 2016

antónio ramos rosa / a paixão do ar



Olhar sem caminho em cheio
a tranquila onda muscular
paralela à mão aberta e livre

Uma escrita a nascer dos alvos flancos
a paixão do ar como uma chama

Paixão que une a terra cheia ao mar
o olhar respira em todo o corpo igual
o corpo eleva-se sobre a montanha fácil

O fogo flexível.


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985



28 abril 2016

eugénio de andrade / matinal



Que seja fogo e suba ao cume
das águas seminais e duras,
e cante, invada, inunde
 – juventude, juventude!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971