Há livros que li e reli vezes sem conta, textos de
escrita sublime e essenciais para quem deseja aproximar-se da verdade dos
factos. Infelizmente, não me agradam apenas a mim, mas também aos amigos que
frequentam a minha casa e o estúdio. Desaparecem... e sou obrigado a comprá-los
de novo. Tenho de aprender com um meu antigo professor, que impedia os furtos
prendendo os livros com correntes às estantes da biblioteca. Um dos volumes
sujeitos a desaparecimento é um ensaio sobre a Grécia Antiga de Moses I. Finley.
Tranquilizem-se: não vos vou lê-lo, queria apenas indicar-vo-lo.
Se por acaso puderem dar-lhe uma vista de olhos, descobrirão uma história
completamente inédita sobre os helenos: fortes tensões sociais, intrigas
arcaicas dos políticos, clientelismo do tipo italiano, corrupção, criminalidade
dos dirigentes da primeira democracia humana. E estamos completamente antes de
Cristo!
Temos de reconhecer que muitos dos nossos
governantes são de uma honestidade discutível, sim, mas cultos: imitam sempre
«os clássicos».
Mas como é que nos textos de outros historiadores
da Antiguidade nunca se encontram, a não ser casualmente, estes testemunhos de extorsões
e roubos? É apenas urna questão de diferença das fontes a que recorrem. Em
poucas palavras, todos os historiadores da Antiguidade repetiram Heródoto,
Tucídides, Plutarco, Políbio…
Não se assustem: não estou a exibir erudição —
aprendi isto nas palavras cruzadas.
Pelo contrário, o nosso Finley afastou logo os
historiadores clássicos, declarando claramente que os textos não passavam de
patranhas sem fundamento, ao serviço da partidocracia, e que as únicas
testemunhas dignas de crédito e honestas daquela época eram os cómicos, os
dramaturgos satíricos gregos, isto é, Aristófanes, Arquiloco, Colofone... Para
já não falar de Luciano de Samotrácia.
Por favor, não se impressionem... Estes sei-os de
memória. São os autores de quem li as histórias e as comédias desde o tempo em
que frequentava Pinóquio e Sussi e Biribissi.
Para dar razão a Finley, basta ler algumas das tiradas
satíricas daqueles autores.
Vejamos Aristófanes, em As aves: «Os nossos mercadores são de uma avidez abjecta: para além
de nunca pagarem impostos, para lucrarem mais, matariam melgas para darem um
capote às moscas.» Não está mal, pois não?
E Arquiloco: «É certo: Epilone, o Arconte (isto é,
o ministro das obras públicas de então), é um ladrão: vendeu a empreitada de
restauro das velhas cloacas a um empreendedor incapaz e criminoso, de modo que
hoje, quando chove, as cloacas rebentam e Atenas é inundada por esgotos
fétidos. Ontem caiu um dilúvio — o rio fedorento transbordante invadiu o
assento da assembleia e o gabinete onde Epilone opera e causa danos.
O responsável pelas cloacas permaneceu na ratoeira.
Encontraram-no atolado até ao pescoço em excrementos. É mesmo verdade que por
vezes o deus emprega a parte mais baixa de
si para atingir os malvados.»
E outra vez Aristófanes: «Catino andou na guerra e
apresenta-se em todas as ocasiões com o elmo emplumado dos combatentes. Dizem
que, quando vai a casa da amante exibir o falo, se despe todo mas deixa o elmo
na cabeça! Aquele Catino: que cabeça dura!» É Aristófanes, hein!
Pois Finley garante-nos que estes testemunhos,
definidos pelos académicos como «boutades
de ébrios», são documentos históricos mais importantes e fidedignos que todas
as patranhas produzidas pelos vários Heródotos e Plutarcos, sobre as quais a
censura não intervinha. Eu disse censura? Existiria já, porventura, esta santa instituição
no tempo dos dórios e dos jónios? É verdade que afirmam ter nascido com o
Homem, ou mal foi instituída a lei de Deus. Um historiador tentou demonstrar
que ainda antes do nascimento do teatro existia já a organização censória, e
que foram exactamente eles, os censores, a inventar o teatro, para depois terem
a possibilidade de agirem e de se mostrarem úteis ao poder.
O facto é que denúncias e processos eram o pão
nosso de cada dia, em Atenas. Todos os autores satíricos acabavam
inevitavelmente por ser levados a tribunal, instituído para defender a moral
vigente. Assim, Aristófanes conheceu a prisão e arriscou-se mesmo a ser
condenado à pena de morte por ter satirizado veementemente Catino, caído em batalha
e oferecendo o seu peito ao inimigo. Foi pena a seta mortal tê-lo atingido nas
costas! O poeta salvou-se graças à intervenção de alguns intelectuais de bom
senso e espírito, coisa muito rara mesmo no tempo dos magníficos Gregos.
Também Aristófanes se viu metido em grandes
sarilhos quando, apresentando As mulheres
no parlamento, se permitiu descrever Atenas reduzida a uma cidade privada
de homens válidos e dignos. Estamos no século IV antes de Cristo e o exército
protegido por Atena, deusa da vitória, fora destruído pelos siracusanos,
aliados de Esparta, durante a campanha de Sicília (Magna Grécia). Diz-se que
onze mil homens, todos na flor da idade, não regressaram à pátria. Mesmo neste
caso, os historiadores da época não falaram de guerra, pilhagem e saque, mas de
defesa da civilização e da democracia, uma vez que a expedição visava,
justamente, impor a democracia àquele povo bárbaro e dominado por tiranos.
Frequentemente, nas comédias de Aristófanes era o
próprio autor em pessoa que, colocando um máscara grotesca chamada Bufão,
apresentava a situação da farsa representada. O Bufão entrava em cena no
intervalo entre actos, insultando o público, dizendo piadas e proferindo
perfidamente, como um verdadeiro Bufão, trivialidades maliciosas.
Em As aves,
uma das mais famosas comédias satíricas, encontramos um monólogo no qual o
actor entra em cena e, primeiro, começa a adular o público; depois, pouco a
pouco, inverte a situação e cobre-o de impropérios, acusando-o de revelar-se
ignorante, fútil e incapaz de compreender as alusões mais óbvias. Por fim,
apercebe-se de que alguém ri e, então, lança comentários e chistes sobre
aqueles que riem fora de tempo e a despropósito, fazendo pouco das pessoas que
haviam ido ao teatro levando consigo os escravos mascarados de mulheres
(habitualmente, os escravos estavam proibidos de entrarem nos teatros): fazem-se
acompanhar dos escravos, afirma, para que estes lhes expliquem o significado
das deixas satíricas. Mas eis o texto:
Bufão (entrando
em cena como que furtivamente e olhando extasiado à sua volta): Ah, ah, ah,
oh, meu Deus, que público extraordinário! Já passei por todos os teatros, do
Pireu ao Helesponto, e poucas vezes me vi perante um público assim! Incrível!
Sonho convosco até de noite... (Muda
subitamente de tom) Vocês são um pesadelo! Que têm na cabeça? Será possível
que não consigam compreender um jogo de palavras ou uma alusão alegórica? Meu
Deus, as melhores deixas satíricas deslizaram sobre o vosso cérebro como
toucinho sobre manteiga! Finjam, ao menos, que percebem: temos hoje
estrangeiros na assistência — que bela figura fazemos à frente deles! Riam-se!
(Vira-se para um lado e para o outro,
como que à escuta) Não, assim não, ao acaso, mas na altura da deixa. Esperem:
eu faço-vos um sinal! Assim, com um estalo de dedos.., e vocês: ah, ah, ah! (A correr, dirige-se para a direita até ao
limite do proscénio) Mas, valha-me Deus, que está aquele a fazer, todo
agarrado à mulher, com as mãos em todo o lado? Peço-te: vira-te também para
aqui, de vez em quando! Podes deixar as mãos aí em baixo, mas olha para mim um
segundo! E aquele que está há uma hora a limpar o nariz: vai lá dentro, vai até
ao cérebro! Que esperas encontrar? Convence-te: não tens nada no crânio. Tira o
dedo do nariz! Eh, um momento, tu, aí, que te riste. Sim, tu agora ris-te do
outro, mas o que é que tens estado a fazer? Há uma hora que coças os tomates, o
que é que tens? Todos os insectos chatos que estavam no Areópago acabaram por
se instalar entre as tuas coxas!! Ah, ah, ah!!! Daqui a pouco serás
transportado em voo até Júpiter! Um pouco de atenção, por favor! Não se
consegue continuar com esta algazarra, não se consegue sequer representar... Se
tivesse ido à Beócia, que é a Beócia, pátria dos beócios... teria ficado mais
satisfeito, por certo! A melhor coisa seria lançar-vos punhados de amendoins,
como se faz aos macacos.
Ah, ah, ah... pelo menos, ouviríamos aplausos no
momento em que fossem arremessados em quantidade, para recolherdes às mãos-cheias!
Oh, finalmente alguém se riu! Ah, ah, ah, não... não é um espectador: é um
vendedor de amendoins! Ofendi-vos, porventura? Tendes razão: humilhei-vos; não,
exagerei, não... Sim, admito: em Atenas também há pessoas inteligentes. Não é
para vos gabar, juro: conheço-as, são pessoas argutas e de raciocínio finíssimo.
(Pausa)
Mas elas não estão aqui esta noite, infelizmente, e
sente-se a sua falta! (Ri a bandeiras
despregadas e depois volta-se para uma pessoa das primeiras filas) Que
vieste aqui fazer?... Ah, bem, porque... parece bem. «Vou ao teatro, logo, sou
inteligente.» E quem te disse isso? À tua mulher, mais instruída, mais esperta,
deixa-la em casa... As mulheres... não podem vir aqui, ah, ah, ah... É inútil
virem ao teatro porque não atingem tão longe... e ficam bem contentes por ficarem
sozinhas em casa — sozinhas é uma maneira de dizer. Quem te impede?... Se te
sentes tão indignado, sai! Volta para casa!!! Sim, corre, mas, se te
apressares, encontrarás um espectáculo extraordinário: a tua mulher nua com o
criado, que se diverte, ele sim, de um modo inteligente, ah, ah, ah! (Aplausos)
Mas de onde veio a ideia de As aves?
A comédia, para quem não se recorda, é sobre dois
atenienses que decidem abandonar a cidade sob o pretexto, mais do que moderno,
do asco das infâmias, dos jogos políticos baixos e dos processos orquestrados.
Parece passar-se na Itália dos nossos dias, com os governantes actuais e
Andreotti à cabeça de todos que, como se sabe, vivia já então e fazia parte do
parlamento ateniense. A sua figura reconhece-se em algumas pinturas em vasos
áticos, no acto de fuga, com um extraordinário golpe de rins, ao enésimo inquérito
sobre jogos de poder altamente perigosos. Longa vida ao inqualificável génio do
equilibrismo político, verdadeiro malabarista que consegue, sem nunca cair da poltrona,
jogar com a moral, a religião, o compromisso, e não revela escrúpulos com a
máfia e a justiça.
As personagens da comédia, dizíamos, enojadas com o
andamento político-patifório, partem com o objectivo declarado de encontrarem
uma cidade ideal. Decidem parar num mundo intermédio, entre a terra e o mundo
dos deuses, que é o das aves, onde, pelo menos, vigora um sistema de vida
baseado em certas honestidades que os homens não possuem. Aprendem a voar,
munindo-se de asas amplas, lançando-se no vento e executando reviravoltas verdadeiramente
acrobáticas. Graças às correntes ascendentes, sobem ao alto e chegam ao Olimpo,
onde são recebidas pelos deuses. Naquele paraíso de felicidade suprema, descobrem,
infelizes, que os deuses copiaram dos homens o pior que com eles podiam aprender:
as fêmeas divinas traem e entram em combinações de uma sexualidade desbragada,
impossível até de representar. No que toca aos deuses masculinos, a corrupção, a
hipocrisia e os embustes são o pão nosso de cada dia. Aos nossos dois viajantes
não resta outra solução que não lançarem-se no vazio e flutuarem entre as
nuvens em busca do mundo das aves, sua última esperança. Inútil será dizer que
mesmo na sociedade volátil encontram o contrário do que esperavam. Em palavras
modernas, a prevaricação, a violência e as desigualdades mais brutais: um
grande número de pardais, tordos e tentilhões sujeitos a maus tratos de toda a
espécie pelas grandes aves de rapina, incluindo darem consigo transformados em
banal refeição quotidiana dos alados nobres e poderosos.
Os actores cómicos apresentam-se caracterizados e
mascarados de águia, falcão e abutre no momento em que se lançam sobre uma
garça-real, um grou e um cisne. Agridem-nos, arrancando-lhes as penas com uma
ferocidade indizível. Os dois visitantes humanos vêem-se rodeados de plumas e
penas, como se aquelas aves de rapina estivessem a despedaçar almofadas. Tentam
fazer cessar a orgia, mas, como resultado, são por seu turno confundidos com
aves de alimentação e vêem-se obrigados a bater em retirada. Acalmada a confusão,
regressam ao local do festim e, com veemência, acusam as três aves de rapina do
massacre. A defesa das aves imita a linguagem dos políticos humanos. Antes do
mais, contra-atacam, recordando aos dois convidados que aquelas aves são um símbolo, mesmo para a raça humana, de coragem e de glória. Os elmos dos heróis
gregos exibem sempre uma águia ou um falcão: o seu deus máximo, Zeus, oferece
os próprios ombros às aves de rapina, como poleiro, assim como Atena. «E não se
esqueçam de que nós, os grandes emplumados, fomos criados pelos deuses
exactamente para evitar o risco de povoamento excessivo do céu. Sem a nossa
atitude agressiva, o universo seria sulcado por bandos de aves comuns, em tal
número que obscureceriam o sol. De resto, é o que fazem também vocês, homens. O
que são as guerras, senão um expediente irrepreensível para reduzir a excessiva
propagação das raças de menor valor e evitar que estas se tornem hegemónicas,
sufocando na multidão as raças eleitas e indicadas pelos deuses como aquelas às
quais é dado governar e gozar os frutos deste mundo?»
Notaram certamente que nas comédias dos grandes
sarcásticos gregos encontramos argumentos e situações que abordam a política e
o poder, não para lhes tecer elogios, mas para denunciar as suas infâmias. Por
conseguinte, a sátira nasce sempre da tragédia. Na base da comicidade grotesca
há sempre uma situação dramática. Nas farsas gregas mais famosas tudo gira em
torno de injustiças paradoxais, embustes criminosos, violências perpetradas
sobre mulheres e crianças inocentes, massacres de populações, destruições de
cidades e prevaricações de tiranos com o consequente desprezo pelos direitos
civis e pela liberdade: a dor e o desespero são o seu motor essencial. Por
outro lado, quando sobre o palco se encenam comédias que propõem como tema a
mofa em si mesma, o chiste sobre defeitos físicos da personagem visada, alusões
à sua insuficiência erótico-sexual, as traições das mulheres suportadas com
alegria, como se fossem prendas... então, não se trata de sarcasmo, nem
político nem moral, mas apenas de zombaria, que é uma coisa completamente
diferente.
Para finalizar, o jogo satírico ofende e indigna
sempre o poder; a zombaria, diverte-o.
(…)
dario fo
o amor e o
escárnio
trad. maria de fátima st. aubyn
gradiva
2008