12 setembro 2025

joão miguel aragão / planos para a noite

  
 
Compor, decompor madrigais
em madrugadas a ferro e fogo.
Demorar o olhar no ser amado,
armado de amor até aos dentes.
 
 
 
joão miguel aragão
pacto
poética edições
2025



11 setembro 2025

miguel oliva teles / por todo o lado

  
 
os frutos
descem da árvore
as raízes abrem
e o amor
entorna
 
por todo
o lado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 setembro 2025

pedro de queirós tavares / fulminantes (em vilar do paraíso)

  
 
Na minha rua brincávamos à roleta-russa
com pistolas de fulminantes
Não era carnaval nem dia das bruxas
em Vilar do Paraíso tímpanos para quê
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023





09 setembro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

  
 
LIV.
 
poder dizer:
aquilo que me dás ao amar-me
é a possibilidade de desaparecer –
 
estou a redescobrir o amor através das palavras.
 
as outras uniões
terão de vir depois.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024




 

08 setembro 2025

izidro alves / metanoia

  
Se fosse hoje
Tinha tirado um curso superior
Talvez de latim e grego
Para falar com os deuses
E nunca nunca nunca
Esta maneira tosca de fazer versos
Este jeito de arquear as mãos
De alimentar os pombos
Nos jardins públicos
Com flores amarelas nos passeios.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025




07 setembro 2025

filipe marinheiro / porque nos prendemos a um lugar seguro?




 

 
porque nos prendemos a um lugar seguro?
se o mais importante é a calma, a pureza, a unidade e o modo
como as árvores de mar se enraízam no solo.
– luminoso solo em potência.
 
 
 
filipe marinheiro
a morte do amor
cordel d’ prata
2025
 


 

06 setembro 2025

joão rebocho / a morte

  
 
a morte
caminha ao nosso lado,
carregamo-la às costas,
a vida toda
alimentada na boca,
debruçados no poço;
a de quem nos interessa e amamos,
 
sempre a morte,
do profundo sono
ao cume do Everest,
e também pesa o
medo dela,
trinta vezes mais,
e não peses que é só tédio
repetido
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 


05 setembro 2025

herberto helder / aberto por uma bala

 



 

 

Aberto por uma bala
de fora para dentro. Como um olhar de Deus,
ou da paisagem,
até à raiz do nervo de que vivo todo.
Aberto, descoberto.
Ou fechado inteiro para sempre.
E ao furo imaginário queimado
reflui o sangue do mundo.
O nó mais duro, o puro nó da carne
– o centro.
Furioso fulcro do espírito.
É aí que penso.
Por onde falo ainda tão depressa
que ressuscito, ardido.
 
 
 
herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987






04 setembro 2025

cesare pavese / paisagem VIII

  
 
As recordações começam ao cair da tarde
com o hálito do vento a erguer o rosto
e a escutar a voz do rio. A água
é a mesma, na escuridão, dos anos mortos.
 
No silêncio da escuridão eleva-se um murmúrio
onde passam vozes e risos distantes;
acompanha o rumor uma cor inútil,
de sol, margens e olhos claros.
Um Verão de vozes. Cada rosto contém
como um fruto maduro um sabor passado.
 
Cada olhar que volta conserva um gosto
a erva e a coisas impregnadas de pôr-do-sol
na praia. Conserva um hálito de mar.
como um mar nocturno é esta vaga sombra
de ânsias e arrepios, que o céu roça
e que volta ao fim de cada dia. As vozes mortas
assemelham-se à rebentação daquele mar.
 
 
 
cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997





 

03 setembro 2025

claudio rodríguez / sem epitáfio

  
Levanta voo entre os flocos cegos
de cada letra. Solta
uma inocência que então se grava
mesmo ao meio da alma. Deixa, deixa
tal mistério, e tal proximidade,
tal segredo que é já renascimento.
A vida pressente-se. Vai, vai. Foi
essa harmonia de pesar e graça,
tal a felicidade que é verdade
e agora alumia o teu ofício
com o seu silêncio fugidio, em som
sereno como de água ao meio-dia.
Levanta voo. Não entres
neste corpo total:
onde amanhece.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

02 setembro 2025

joan margarit / chegas tarde ao teu tempo

  
Chegas tarde ao teu tempo. palavras duras
que escuto agora como uma derrota.
Mas já não sei de nenhum combate,
nem que tempo era o meu. É uma pena
não se ser ninguém, ter errado
o comboio, perdido as malas,
adormecido no banco, passar ao largo,
e achar-se agora sem roupa limpa,
cansado, num hotel reles de uma só
e má estrela, que deve ser a minha.
Prescindirei de tudo menos do poeta
que fica do desastre. Fingirei ver
que no fim de contas errei o século:
isto será Paris e eu Verlaine.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




01 setembro 2025

nizzar qabbani / sobre o amor marinho

  
 
sou o teu mar, senhora minha,
e não me perguntes da viagem
nem do tempo da partida e da chegada:
só tens de
esquecer os impulsos da terra
e obedecer às leis do mar
e entrar-me como peixe enfurecido;
racha o navio em dois pedaços
e o horizonte em dois pedaços
e a minha vida em dois pedaços
 
 
 
nizzar qabbani
um árabe é um árabe é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções de joana santos e andré simões
contracapa
2022




31 agosto 2025

maria do rosário pedreira / nesse verão…

  
Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias
 
rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. de noite, os rapazes deitaram-se às baías
 
atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:
 
o verão desarruma os sentimentos.
 
 
 
maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001