22 maio 2025

victor oliveira mateus / monólogo do estrangeiro

 
 
 
de milagres nada sei
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara
 
de milagres sei apenas o que li
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo
 
de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos
 
abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




21 maio 2025

maria f. roldão / imunidade




 

 
Salto aquela parte em que é
preciso lavar as mãos antes
 
do acto. Entro directamente
na parte das bactérias em
 
que o sujo é belo e a vida
não admite lavagens.
 
 
 
maria f. roldão
a cadeira de mogno
edição do autor
2025
 




 

20 maio 2025

tiago araújo / as maçãs prateadas da lua

 
 
 
os homens fumam cigarros consumidos. inteiros na dupla brisa alveolar. e as mulheres cantam por uma. chuva prateada de mercúrio. que multiplique os rostos. espelhados na gordura das gotas.
 
à luz laranja das garrafas de cerveja. as mãos guardam um mistério mais profundo. actuam lentas sobre as mesas. à luz que atravessa a roupa estendida os rostos. são mais suaves. escondem um segredo: a memória do sol; o esquecimento de serem maçãs prateadas da lua.
 
 
 
tiago araújo
fórmulas
quasi
2004




19 maio 2025

izidro alves / estratégia de guerra

 
 
 
Não tem importância
A camisa ensanguentada
Estendida no arame farpado
Mas tem.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025





18 maio 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
 
4
 
por um pequeno buraco, como é costume, saio à superfície anónima da neve
um campo todo em si aberto um tanto à tua semelhança Tu que
não começas nem acabas Talvez um dia deixes de lado o mundo para passar
                                                                       [a outra coisa E nós
enquanto se faz tarde subimos as colinas num feérico assento
só para sentir a boa indiferença do vento
e as árvores que se afastam como arrastadas para outra noite
Tu que abriste os buracos do corpo E assim ficámos
surpresos por um rastro de gente na relva
 
ainda não é esta a devida maneira de dizer as verdadeiras coisas falsas Por exemplo
os nomes vários da luz do fim do dia
nós os mais velhos podemos exclamar acesos num entusiasmo e misturar
o passado com o futuro que só existe levemente ao lado
e adivinhar no silêncio dos barcos o disfarce do jovem herói
e bater com a sandália nas portas em sinal de grande impaciência
ainda assim continuaremos a esvaziar o poço com a canga nos ombros
senhores deste pequeno inferno de trazer pelo mundo
 
por cima o céu por mais que digam continua fixo excepto quando
na larga noite as estrelas se separam
lançadas pela pista lisa só as ouvimos cintilar
incoerentes
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996
 


17 maio 2025

herberto helder / fragmento do cairo

 
 
 
Quando eu a cinjo e ela me abre os braços,
sou como um homem que regressa da Arábia,
impregnado de perfumes.
 
                                               *
 
Desço o rio numa barca,
ao ritmo dos remadores.
Com um feixe de canas ao ombro,
vou para Mênfis,
e direi a Ptah, senhor da verdade:
«Dá-me esta noite a minha amada.»
Este deus é como um rio de vinho,
com seus maciços de canas.
E a deusa Sekmet é como se fosse a sua moita de flores.
E a deusa Earit, seu lótus em botão.
E o seu lótus aberto, o deus Nefertum.
- E a minha amada será feliz.
 
Levanta-se a aurora através da sua beleza.
Mênfis é um cesto de tomates
posto em frente do deus de rosto puro.
 
                                               *
 
Bom é mergulhar, bom,
ó deus meu amigo,
é banhar-me diante de ti.
Adivinhas-me, quando se molha
minha túnica de fino linho real.
E juntos entramos nas águas,
e à tua frente eu saio das águas,
agarrando entre os dedos
um estupendo peixe encarnado.
– Olha para mim.
 
                                               *
 
Tanto se alvoroça meu coração, de puro amor,
que metade da minha cabeleira se desfaz,
quando corro ao teu encontro.
 
 
Para que me vejas sempre igual e bela
diante de ti,
eu componho os meus cabelos.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
o bebedor nocturno (versões)
poemas do antigo egipto
assírio & alvim
1996





16 maio 2025

nuno júdice / preparativos de viagem

 
 
 
Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
 e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.



nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024





 

15 maio 2025

gastão cruz / o tempo

 
 
 
Vivi onde as estrelas enegrecem
na luz intermitente
 
Intervalos longínquos
ocultaram do meu olhar o tempo
 
Desisto dele
um cadáver em chamas me vence
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




14 maio 2025

pedro tamen / num outro mar que desses morreria

 
 
 
Num outro mar que desses morreria
e não invejo, pois, a só migalha
que a mão que tens mais leve certo dia
a outros pelo vento cega e espalha.
 
A mim, amor, só cabe, qual convém
para o centro da terra, teu miolo;
e, mais, do que isso, a tua chaga-mãe,
a perfeita descida do teu colo,
 
o lado fora, e nele o imo expresso
nos acidentes líricos do leito
em que, de ter-te, só me tenho e esqueço.
 
Em nada tenho tudo, dito e feito,
e nisso tens a estrela que mereço
brilhando perto, ao fundo do teu peito.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
os quarenta e dois sonetos (1973)
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995




 

13 maio 2025

antónio osório / e súbito na rua desfilaram

 
 
 
E súbito na rua desfilaram
os fatigados elefantes
e símios, bobos de bobos, anões
falsamente ledos, a trapezista
que me deu vontade de chorar,
aqueles seres, os palhaços, que traziam
o admirável grotesco dos homens,
os cavalos, brancos, já por sua idade
e a jaula viajante dos leões,
estendidos, expectantes como sáurios.
E por uma contorcionista,
que torturava o corpo,
apaixonei-me: enredada em mim,
como serpente, estava a sua alma.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
ponte velha
editorial presença
1982
 




12 maio 2025

fernando guerreiro / a fúria da razão

 
 
 
Diz-se que os cegos não conhecem a luz, talvez porque
para a razão o sentimento lhes reservou outros caminhos.
O melhor, contudo, é não acreditarmos nestas histórias.
É vê-los cair, arrastando na queda os instrumentos
de que se servem para nos entreter os sentidos.
também não se atrevem a atravessar florestas
e quando a chuva cai, choram convulsivamente.
Ratos devoram-lhes o cérebro e arrastam segredos
para o cemitério. Para que quereriam a luz?
mesmo quietos é difícil não perceber a violência.
Apenas uma fúria incomunicável que os legitima
por dentro. É sem palavras – ou imagens – o pensamento.
Quando juntos, abandonam as famílias – e riem-se
Se, à sua passagem, alguém lhes pede música.
 
 
 
fernando guerreiro
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002
 



11 maio 2025

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
13
 
A asa ferida da pequena perdiz
concilia-te agora com o poder do sol.
 
Sobre o centro da luz o curativo vinga
o absoluto abandono em que te encontrei.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999






10 maio 2025

jorge melícias / são belos os instrumentos da minha morte

 



 
 
São belos os instrumentos da minha morte
nas suas mãos, a destreza da ira
sobre os trépanos, a forma
como o grito se abre de cânulas.
 
 
 
jorge melícias
incûbus
quasi
2004