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CORPO. Todo o pensamento, toda a emoção, todo o
interesse suscitados no sujeito apaixonado pelo corpo amado.
1.
O seu corpo estava dividido: de um lado, o próprio
corpo – a pele, os olhos –, terno, caloroso, e, do outro, a voz, breve,
moderada, sujeita a momentos de afastamento, uma voz que não oferecia o que o
corpo oferecia. Ou então: de um lado, o seu corpo macio, morno, débil na sua
justa medida, protector, fingindo-se acanhado, e, do outro, a voz – a voz,
sempre a voz – sonora, bem definida, mundana, etc.
2.
Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a
examinar longamente o corpo amado (como o narrador diante do sono de
Albertina). Examinar quer dizer revistar: revisto o corpo do outro, como
se quisesse ver o que há lá dentro, como se a causa mecânica do meu desejo
estivesse no corpo adverso (pareço-me com esses miúdos que desmontam um
despertador para saber o que é o tempo). essa operação processa-se de um modo
frio e surpreso; estou calmo, atento, como se estivesse diante de um estranho
insecto que subitamente deixo de recear.
Certas partes do corpo são particularmente adequadas a esta observação: as pestanas, as unhas, a
raiz dos cabelos, os objectos muito específicos. É evidente que estou então a
fazer de um morto um fetiche. A prova está em que, se o corpo que examino sai
da sua inércia, se põe a fazer qualquer
coisa, o meu desejo se modifica; se, por exemplo, vejo o outro pensar, o meu desejo deixa de ser
perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente.
(Via tudo do seu rosto, do seu corpo, friamente: as
pestanas, a unha do dedo do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, o brilho
dos olhos, um determinado sinal, uma maneira de estender os dedos ao fumar;
estava fascinado – não sendo o fascínio, em suma, senão a extremidade do
desprendimento – por essa espécie de figura colorida, de faiança, vitrificada,
onde podia ler, sem nada compreender, a
causa do meu desejo.)
roland
barthes
fragmentos de
um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017