11 março 2022

josé saramago / primeiro e segundo poemas dos mortos

 
 
1.
Os homens são mortais mas não se pode ter a certeza de que todos
     o sejam só aqueles que são vistos morrer diante dos nossos olhos
 
Quem vai saber se dentro do caixão fechado o corpo está ainda ou
     pelo contrário se ausentou deixando apenas o peso
 
Os homens são talvez mortais porque em verdade são muitos os que
     não voltamos a ver e a morte em tais casos será convenhamos
     uma razoável probabilidade
 
Mas muitos outros a maioria são provavelmente imortais porque vêm
     já vivos quando os vemos pela primeira vez
 
E assim continuarão noutros lugares se neste não habitam mais
 
Aliás nem seria concebível outro modo de conseguirem estar os homens
     em toda a parte com as flores numa planície que em uma só manhã
     se abrem
 
Ou um bando de aves migradouras repartindo o céu sobre o mundo ou
     um rápido e rebrilhante cardume de peixes que remexe o oceano
     benevolente
 
Os homens serão imortais um dia mas a prova não se fará antes de a
     Terra se acabar e mesmo assim
 
Porque poderão os homens ter-se ausentado dela sem mais deixando
     somente a memória como o peso num caixão vazio
 
 
2.
Hoje a terra tremeu porque os mortos se voltaram sobre o lado direito
     para aliviarem o coração
 
É um abalo diferente dos outros que mais se julgaria o suspiro de um
     corpo adormecido que rola um pouco e facilmente esquece
 
E é também um movimento tão igual ao da vida que nos sismógrafos o
     registo muda de cor e o traço é como um fio de sangue
 
Porém os vivos fogem medrosos para a rua e não entendem as mudanças
     e pensam que todo o abalo é terramoto e cataclismo
 
Os mortos enterrados a menos de dois metros de superfície desafogam
     o coração enquanto escutam o arfar do núcleo ígneo da Terra
 
Sorrindo sábios conforme se afasta o rumor dos pés que fogem porque
     sempre voltam à palavra interrompida
 
 
 
josé saramago
experiência de liberdade
antologia de textos publicados no
suplemento artes e letras
do diário de notícias de
maio a novembro d e1975
diabril
1976







10 março 2022

samih al-qasim / assim

 
 
como se planta uma palmeira no deserto
como minha mãe dispõe, sobre a minha cara dura, um beijo
como meu pai tira a capa beduína
e soletra as letras ao meu irmão
como arrasta os cascos de guerra um pelotão
como a haste de trigo se levanta na terra estéril
como uma estrela sorri ao namorado
como seca uma brisa o rosto fatigado do trabalhador
como entre nuvens espessas se levanta uma soberba fábrica
como um grupo de amigos começa a cantar
como um estranho para outro sorri afectuosamente
como uma ave volta ao ninho do amado
como um rapaz leva a sua sacola
como o deserto adverte da fertilidade
assim pulsa em minh ‘alma a arabidade.
 
 
 
samih al-qasim
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
2001




 
 
 
 
 

09 março 2022

david teles pereira / rua adamczewski

 
 
Na distante memória, a estreita rua Adamczewski
contorna o olhar até se abrir em direcção ao cemitério
que fica no cimo da colina, onde as crianças brincam
aos castelos numa árvore sem pássaros.
 
Aqui a sombra da morte é tão presente quanto a do fim da tarde;
felizmente ainda mal passámos do meio-dia e os velhos
bebem aguardente de ervas no café à espera de quase tudo,
menos do grito de uma flor que aguarda um destino.
 
Mas eis que ele soa e o nosso tempo altera-se,
como se de ouvido encostado ao chão pudéssemos
associar o triunfo das formigas ao dos nossos antepassados
a caminhar lado a lado pela Rua Adamczewski acima
em direcção ao cemitério, de braços dados, enquanto cantam
Se não são os mortos que nos guardam,
porque é que os deitamos aqui em cima?
 
 
 
david teles pereira
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




 

08 março 2022

james joyce / ela chora sobre rahoon

 


Chove sobre Rahoon, cai lenta, lentamente cai,
Onde jaz o meu fúnebre amante.
Tristonha, sua voz me chama, chamante vai
Lua cinzenta, levante.
 
Amor, escuta
Que suave, que triste a voz que sempre chama,
Sem resposta, a triste chuva sempre clama,
Agora é luta.
 
Soturnos corações, frios e estirados; Oh, amor
Nossos tristes corações de amantes
Sob o urtigal lunacinzento, negro bolor
E a chuva Murmurante.
 
 
 
james joyce
pomas penicada
trad. vinicius alves
editora urutau
2018




 

07 março 2022

dick davis / o mensageiro

 
 
Foi há anos que estiveste
Insistente à minha porta,
Falavas com olhos mudos
Dessa calma e muda costa –
 
Foi há anos, eu ergui-me,
Ao teu apelo entreguei-me,
Com as mãos te saudei
Alheio ao vulto do muro
 
Entre os mortos e os vivos –
Qual se também ir pudesse
Onde o escuro compusesse
O pesar intolerável.
 
E agora que neste ocaso
Regressaste, levantado
Leio de novo o silêncio
Dum escuro olhar lembrado.
 
 
 
dick davis
trinta e dois poemas
trad. joaquim manuel magalhães
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990




06 março 2022

justo jorge padrón / no último encontro

 
 
Ele sabia
que a vida é um curvo
caminho que termina em qualquer parte.
E por sabê-lo costumava ver
os dias e as coisas
como num lento adeus definitivo.
Amava com a dócil
nostalgia daquele que já nada possui
e parece nu, solitário.
 
Para trás iam-lhe ficando
os já apagados rostos,
as ruas soalheiras
onde ardeu a sua vida,
aquele estranho amor ensimesmado
pelas serenas árvores.
 
Tudo o que no seu fluir inevitável
foi amando desde criança
queria decifrá-lo
agora que o seu olhar sem recordações
partia como ar do crepúsculo,
agora que o seu sorriso descansava
no último encontro.
 
 
 
justo jorge padrón
os obscuros fogos (1971)
obra poética (1966-1996)
tertúlia
1998
 



05 março 2022

josé bento / silabário

 
 
55
 
    Este é um dos lugares (ou parte alguma?)
que nunca esperei ocupar ou ver sequer,
alheio em tudo, igual a tantos outros
que breves soube e de que nada guardo.
Um só espaço em verdade me pertence,
– meu berço, meu texto, meu legado:
a casa que é a mãe e viverá
enquanto eu não abdique do seu sangue.
Lá estou e serei: sou as paredes,
a escuridão que a procura e adormece,
sublimando-a tanto como a luz,
trave do seu lar frio e seu apelo,
pelas janelas vendadas defendida.
Batei à porta, chamai do seu jardim
devastado até não me ser senão lembrança:
lá dentro, responderei, embora aqui,
desde sempre à espera de ninguém.
 
 
 
josé bento
silabário
relógio d´água
1992
 
 


04 março 2022

konstandinos kavafis / muitas vezes verifiquei…

 
 
 
Muitas vezes verifiquei que os homens dão pouca importância às palavras. Vou explicar-me. Uma pessoa banal (com banal não quero eu dizer que seja tola, apenas alguém que não é relevante) tem uma ideia qualquer que é de censura a uma instituição ou a uma opinião generalizada; sabe que a grande maioria pensa o contrário e por tal razão cala-se, pensa que não lhe convém falar e argumenta que a discussão não altera nada. É um grande erro. Eu actuo de outra maneira. Censuro, por exemplo, a pena de morte. Quando a ocasião se proporciona declaro-o, não porque esteja convencido de que os Estados vão fazer a sua abolição no dia seguinte, mas por estar convencido de que vou contribuir para o triunfo da minha opinião. É indiferente que ninguém esteja de acordo. As minhas palavras não caem em saco roto. Talvez alguém chegue a repeti-las, e possam ir ter a ouvidos que as oiçam e apoiem. Pode ser que alguém, entre os que não concordam agora, no futuro vá recordá-las em circunstância favorável e, havendo o concurso de outras circunstâncias, se convença ou ponha em dúvida a sua convicção, que lhe é contrária. E o mesmo se passa com outros problemas sociais, e outras coisas em que é sobretudo necessário haver Acção. Reconheço que sou um cobarde e não posso actuar. Limito-me, por isso, a falar. Embora não acredite que as minhas palavras sejam supérfluas. Outro existirá que vai actuar. E as minhas palavras – palavras de um cobarde – vão facilitar-lhe a actuação. Prepara-lhe o terreno.
 
(19-10-1902)
 
 
 
konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994




03 março 2022

joaquim cardoso dias / o preço das casas

 
 
não foi ao mesmo tempo
uma viagem o mesmo ar entre o teu sorriso
ou esta navegação política da idade
 
mas eu acreditei em tudo
desde a primeira vez em que estivemos juntos
eu dava meia volta e a lua
lá estava durante o sono
no meu espelho de atravessar os mares
iludindo a vontade de chorar
até a temperatura se tornar insuportável
na interpretação quase televisiva do mundo
 
de repente pouco sabíamos um do outro
e a sensibilidade ficou assombrosamente maior
por denunciar a minha barba cada vez mais insistente
 
agora só o teu corpo consegue despir-me
agora posso sonhar até deixar de ter
e teremos perdido tudo por engano amor
e durmo contigo sem ninguém ver
esta rosa do fundo da minha cabeça
dormirei contigo esta noite aqui devagar
onde atiro pedras a todos os sentidos
 
apago a luz e espero o sono
as pálpebras limpam este desejo no movimento da respiração
já não tenho comprimidos para te esquecer
 
 
 
joaquim cardoso dias
o preço das casas
de uma porta à outra
gótica
2002




 

02 março 2022

jean-philippe toussaint / o banho

 
 
33)
Há duas maneiras de ver cair a chuva quando se está em casa e por detrás de um vidro. A primeira, é manter o olhar fixo num ponto qualquer do espaço e observar a sucessão da chuva no lugar escolhido; esse modo, repousante para o espírito não dá qualquer ideia da finalidade do movimento. A segunda, que exige muito mais ligeireza do olhar, consiste em seguir com os olhos a queda de uma única gota de cada vez, desde a sua entrada no campo de visão até à dispersão da água no solo. Desse modo é possível representar-se-nos que o movimento, por mais fulgurante que seja na aparência, tende essencialmente para a imobilidade e que em consequência, de tão lento que às vezes pode parecer, arrasta continuamente os corpos para a morte, que é imobilidade. Olé.
 
 
 
jean-philippe toussaint
o banho
trad. luís nogueira
fenda
1990




01 março 2022

ingeborg bachmann / estrelas de março

 
 
Longe vem ainda a sementeira. Surgem
os primeiros campos à chuva e estrelas de Março.
O universo ajusta-se à fórmula
de pensamentos estéreis, a exemplo
da luz que não toca na neve.
 
Haverá também pó sob a neve
e o que não se desfez servirá depois
de alimento ao pó. Oh vento a erguer-se!
Arados rasgam de novo as trevas.
Os dias querem alongar-se.
 
Nos dias longos semeiam-nos sem nos perguntar
aqueles sulcos tortos e direitos,
e as estrelas retiram-se. Nos campos
crescemos ou morremos ao Deus dará,
obedientes à chuva e por fim também à luz.
 
 
 
ingeborg bachmann
o tempo aprazado
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992




28 fevereiro 2022

paul éluard / diálogo

 
 
 
Belo invento coberto de vergonha
Memória de oiro enrolada no chumbo
Amor glorioso posto fora do leito
Natureza nobre manchada por anões
 
Vinde ver o sangue nas ruas
 
Somos muitos a recusar
Que seja o sol uma faca
Que seja o mar um veneno
Somos muitos a querer viver
 
Nada nem mesmo a vitória
Encherá o terrível vazio do sangue:
Nada, nem o mar, nem os passos
Do saibro e do tempo
Nem o gerânio ardendo
Por sobre a sepultura.
 
Muitos de nós perderam a vida
Na esperança de um mundo melhor
Inocentes seguros dos seus direitos
Eu lhes sorrio e me sorriem
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



27 fevereiro 2022

j. h. santos barros / visões da ilha

 
1.
Iniciei a contemplação do sol
e vi Cassius Clay mudar de nome: pura ave da arábia
ali lia o alcorão. Os operadores da TV
suaram a operação plástica.
Nem um murro nem um gemido.
Sequer um vagido dos filhos da mãe-áfrica
demove estes americanos do norte do consumo.
Disparo o flash e arrumo-o nas impenetráveis regiões
da mente, inacessíveis à tecnologia da eficiente
polícia militar estranha.
 
Contemplei Clay no écran, duro
e só como uma ilha.
 
 
2.
Dispensei-me alguns retoques no verso
confiado à amplidão do horizonte, confinado
aos limites da ilha. Margarida alegrava-me
– essa ave nórdica arribada a esta parte
larga do mar. Amei-a no local onde
a rota é traçada pelas baixas descobertas
à passagem da maré baixa.
 
3.
Faltar-te-ia ao respeito meu amor
se alindasse este pôr-de-sol único,
e o orvalho nas hortenses, as lágrimas líricas
da nossa ilha beijada por deus (por que deus)
ao pé do mar? tantos são os sinais contrários
à luta que temos de empreender de novo?
Guarda bem vivos estes sinais. O perfume deles
não cabe nos narizes envernizados dos nossos senhores
em visitação do campo. Bilhetes-postais são as mãos
e a ligeira claridade que se abre nos teus olhos.
 
 
 
j. h. santos barros
os alicates do tempo
afrontamento
1979