15 fevereiro 2022

rui nunes / somos os que a morte reconduz

 
 
somos os que a morte reconduz
à rapidez das lágrimas, ao ritmo brutal
de uma festa que nada antecedeu:
hiato que a mão utilizou para guiar
a dor pelo trilho da suspeita; somos
os que a morte reconhece como a sua memória,
um rasto que procura a presa e a encontra
no homem que se embrenha por caminhos
dissimulado no seu próprio esquecimento
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007




 

14 fevereiro 2022

joão miguel fernandes jorge / schumann, uma fantasia

 
 
Amo aquele que pede o impossível
quando sente a casa desmoronar tijolo
a tijolo
com a leveza de uma pena liberta pleno
voo
 
de um azul e oiro, o ritmo –
  esse tijolo de barro vermelho
de um modo apaixonado pede
 
a vida
e a vida, num último instante, dá-lhe jardins,
deuses e a energia de uma
cidade suspensa
a luz de um palácio submerso
 
no último instante,
muito lento,
silvam as chamas do desamparo, caducidade
duração
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




13 fevereiro 2022

mário de sá-carneiro / a sala do castelo é deserta e espelhada

 
 
A sala do castelo é deserta e espelhada.
 
Tenho medo de Mim. Quem sou? Donde cheguei?...
Aqui, tudo já foi… Em sombra estilizada,
A cor morreu – e até o ar é uma ruína…
Vem d’ Outro tempo a luz que me ilumina –
Um som opaco me dilui em Rei…
 
 
 
mário de sá-carneiro
indícios de oiro
poemas
assírio & alvim
2007




12 fevereiro 2022

antónio botto / nem sequer podia

 
 
Nem sequer podia
Ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto,
Irritava-me, sofria
Por não poder insultar-te…
Até que um dia,
– Foi no Inverno, anoitecia.
Chuviscava; - uma chuvinha
Impertinente e gelada
Como sorriso de ironia
Numa boca desejada.
 
Já não sei o que disseste;
Nem me lembro do que disse…
 
A chuva continuava.
Atravessámos um jardim.
E à luz fosca
Dum candeeiro,
Segredaste ao meu ouvido:
Quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: - Pois sim.
 
A chuva tornou-se densa.
Eu ia todo encharcado.
Por fim, chegámos; entrei…
Um marinheiro descia
Ajeitando a camisola
E compondo os caracóis.
 
Era uma casa vulgar,
Aonde o amor
– Oculto a todos os sóis,
Se vendia a troco da “real mola”.
 
Arrependi-me. Blasfemei…
Mas quando abandonei os teus braços
Senti que tinha mais alma!
 
E nunca mais te encontrei!
 
 
 
antónio botto
màrio soares, os poemas da minha vida
público
2005




 

11 fevereiro 2022

lamiae el amrani / alma desventurada

pedro calapez


 
Amarrei-me a um vento traidor
Que me levou ao ventre do mar
E me tapou a boca
Com bolhas salgadas
Lágrimas que o mar derramava.
 
Gritei ao vento que parasse
Mas ele continuou a enforcar-me
Com as suas mãos de água
Até que me entreguei ao nada.
 
 
 
lamiae el amrani
trad. zetho cunha gonçalves
nervo/13 janeiro/abril 2022
colectivo de poesia
2022
 
 
 
 

10 fevereiro 2022

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores

 
 
13
os textos são um retrato dos dias
 
ou um salão dentro do qual repousa
uma jarra de porcelana
 
formas que resultam de frágil
consistência pedindo à violência o seu
imodesto exercício de tumulto
 
quantas gerações mais de versos
porém
 
queimarão à vez e com brandura estes
mesmsíssimos enredos
 
 
 
miguel-manso
persianas
tinta da china
2015




 

09 fevereiro 2022

elisabete marques / blue velvet

 
 
A mulher canta o azul – que tinge
as suas pálpebras – daquele jeito açucarado
de ser toda ela cor e violência num vestido de noite.
 
Mas antes, antes do canto, a película
confunde-se com a descoberta de um fragmento
do corpo, a orelha. O labirinto fílmico começa assim.
 
Não, não começa assim. Antes vemos o aconchego
doméstico, a relva, a água, a lama e os acasos da morte.
Preâmbulo para o que teremos de procurar.
 
blue velvet
 
De como o escaravelho, a substância
sôfrega e centenar do bicho côncavo, fundo,
interno à relva cuidada do jardim, vive, matéria
obscura cheia de patas.
 
 
 
elisabete marques
voo rasante
mariposa azual
2015




 
 
 

08 fevereiro 2022

gottfried benn / são desprezíveis…

 
 
São desprezíveis os que amam e os que troçam
e quem espera e o desespero e a nostalgia.
Somos deuses que a dor e a infecção engrossam
e em Deus vamos pensando todavia.
 
A baía suave. Sonho em bosques sumido.
Os astros pesam, flores-bolas de nevar.
Saltam panteras plas árvores sem ruído.
Tudo é margem. Eterno chama o mar.
 
 
gottfried benn
50 poemas
tradução vasco graça moura
relógio d’água
1998




07 fevereiro 2022

cesare pavese / e então nós os vis

 
 
E então nós os vis
que amávamos a noite
rumorosa, as casa,
os percursos no rio,
as luzes vermelho sujo
desses lugares, a dor
mansa e calada –
arrancámos as mãos
de cadeia viva
e calámo-nos, mas o sangue
fez estremecer o coração,
e não houve mais doçura
nem mais abandono
aos passeios no rio –
não mais servos, soubemos
que estávamos sós e vivos.
 
                         23 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021




 

06 fevereiro 2022

hugo carvalheira neves / por mim, digo…

 
 
por mim, digo, não é que tenha pressa alguma nisto
não há é tempo nenhum
e das estações que falam e onde aterram
janeiro, março,
março, maio,
julho
(e isto só dos nós altos que fazem da mão injusta)
para não estarem nos meus últimos
a perder os de igual frio primeiros
(ou de não lhes serem agosto todos)
e mais grave que tudo
os cabelos soltos e como em três tempos os apanham
aí sim, outono inverno
de não se poder com a desatenção feroz
que te devolve ao chão de quando era no ar.
 
 
 
hugo carvalheira neves
certa parentela
do lado esquerdo
2019




05 fevereiro 2022

tomás sottomayor / quando era ainda

 
 
Quando era ainda
possível um verso puro
O dobrar dum sino na
época da festividade
Medrou a melancolia
no sopro que animou
o meu coração.
Consumou-se o exílio
Nos cantos à fertilidade
da terra
Nas vozes frias e brancas
das crianças.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021




 

04 fevereiro 2022

nuno júdice / fevereiro

 
 
A fotografia obscurece o fundo;
nenhum dos sinais do princípio me traz
o conforto de ser, nem
abre a última porta, por
onde passaram os exércitos da noite.
Mas vejo melhor: e
descubro-te, a um canto,
debruçada da varanda – como
se espreitasses o mar verde da memória,
ou procurasses a própria definição
da água, entre o azul
e o negro.
É, de facto, a cor
dos teus olhos,
como a lembro. Encostavas-te
à parede branca, contra
o sol; e a luz não te atravessava
os cabelos com que protegias
o rosto.
 
Desse fundo de minúsculas
particularidades, a tua presença é
a mais evidente. Deixo que
a sombra desapareça de toda a parte,
da parede até ao próprio horizonte; e
é como se saísses de dentro
do tempo, e nos entrássemos,
por instantes, sob um céu de nuvens esburacadas
como as tábuas comidas
pelo sal.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




 

03 fevereiro 2022

sebastião alba / os escribas

 
 
 
Que augúrio se lhes venda no cabelo?
Que vento neles, venenoso, seca a mais arbórea
esperança de agasalho?
O que, luminescente, acode
à superfície do papel, não o revelam:
de cócoras, foram
por demais jovens para as solenes advertências,
e invisíveis como sombras sem orla.
Dum golpe, a noite
invade as ruínas da luz.
 
 
 
sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996