05 outubro 2015

jacques prévert / na minha casa



Hás-de vir a minha casa
Aliás não é a minha casa
Não sei de quem ela é
Um dia entrei por aqui
Não estava ninguém
Só uns pimentos vermelhos pendurados na parede branca
Durante muito tempo fiquei nesta casa
Ninguém apareceu
Mas todos todos os dias
Fiquei à sua espera

Não fazia nada
Quer dizer nada de importante
Às vezes de manhã
Soltava gritos de animais
Zurrava como um burro
Com quanta força tinha
E era uma coisa que me dava prazer
E depois brincava com os pés
São muito inteligentes os pés
Levam-nos muito longe
Quando queremos ir muito longe
E quando não queremos sair
Ficam ali a fazer-nos companhia
E quando há música dançam
Não se pode dançar sem eles
É preciso ser estúpido como o homem tantas vezes é
Para dizer coisas tão estúpidas
Como estúpido como um pé alegre como um pardal
O pardal não é alegre
Só é alegre quando está alegre
E triste quando está triste ou nem alegre nem triste
Será que alguém sabe o que é um pardal
Aliás nem sequer se chama realmente assim
O homem é que chamou aquele pássaro assim
Pardal pardal pardal pardal

É muito curioso isto dos nomes
Martin Hugo Victor de seu nome
Bonaparte Napoleão de seu nome
Porquê assim e não assim
Um rebanho de bonapartes passa no deserto
O imperador chama-se Dromedário
Há um cavalo caixa e gavetas de corrida
Ao longe galopa um homem que só tem três nomes
Chama-se Tim-Tam-Tom sem outros apelidos
Ainda mais ao longe está sabe-se lá quem
E muitíssimo mais ao longe está sabe-se lá o quê
Mas afinal que é que tudo isto importa

Hás-de vir a minha casa
Penso noutra coisa mas é só nisso que penso
E quando entrares em minha casa
Despes a roupa toda
E ficas imóvel nua em pé com a tua boca vermelha
Como os pimentos vermelhos pendurados na parede branca
E depois deitas-te e eu deito-me junto a ti
É isso
Hás-de vir a minha casa que não é a minha casa



jacques prévert
traduzido por zé lima
diversos nr. 3




03 outubro 2015

antónio maria lisboa / z



As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995


02 outubro 2015

antónio madureira rodrigues / resolve crescer para a noite



Resolve crescer para a noite e esperar o início do ruído do corpo apertado
como ao entrar num animal
nos apresentamos directamente na boca
e só aí os dois avançam verdadeiramente no conhecimento do corpo.
Isto é: o afastamento
da mãe – muito tempo na obscuridade sem escrever – como
posso abrir as veias potentes olho-te no silêncio,
vem uma nova sedução do acidente, a quem ele chegar
primeiro pela movimentação dos destroços, o meu alinhamento com gotas
bicos, se alguém vier de novo abre mais o corpo,
a forma batente.


antónio madureira rodrigues
a potência do meio dos nós
quasi
2009




01 outubro 2015

antónio ramos rosa / a respiração do mar



Errantes as palavras, as janelas,
respiração à flor do mar no côncavo da arca,
ombro imenso que não encerra, todo o espaço
como um só corpo onde o vento começa.



antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990



30 setembro 2015

antónio josé forte / assinatura



Entre lágrimas de crocodilo
o homem com gestos de lava
que aponta o local do crime
todas as manhãs
e eu despido de rosas
subo a escada de caracol da morte
para ir deixar na tua pele a assinatura bárbara
com a caligrafia trémula todas as manhãs
e todas as noites de terror
entre a música dos astros



antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987




29 setembro 2015

antónio gedeão / poema da morte aparente



nos tempos em que acontecia o que está acontecendo
                                                                                      [agora,
e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no
                                                                        [tempo deles,
parecia-lhes a vida podre e reles
e suspiravam por viver agora.

a suspirar e a protestar morreram.
e agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas.



antónio gedeão
linha de força
1967







28 setembro 2015

antónio gancho / a estrada



A estrada cumprimentava de vivas a manhã
abria-se a claridade do dia
a noção era consequência de uma ave marinha
não se esquece as coisas que o coração compõe
com igualdade diária
por a estrada por onde nós viajamos há sinais
de brilho
uma nave inunda o sentimento do corpo
para que tudo nos seja dimanado do
anúncio do tédio
Quanto tempo passou que nós estamos à
espera que tudo nos seja propício para
que a razão alimente o vício do ar e do
céu azul
tudo por nós era uma recordação heterogénea
aqui um sinal grave
se era uma papoila abria-se o mar à nossa frente
a nostalgia duma pálpebra aberta no silêncio da noite
por nós o que o tempo lamentava de sonoramente vivido
o que de nós esperou a terna manhã
cumprida como um jamais não haver minutos
o que em nós havia de tudo estar à espera
de que se abrisse um sinal para reflectir
tudo o que havia de solícito era dado por um
não haver mais grandiloquência no que se fosse contar
estar antes era estar à espera de que tudo acontecesse
secretamente para que nada mais houvesse de imanente no fundo
ah é dizer que o tempo não esconde um prurido de que tu
também fosses igual
a estrada andante é caminhar
nós vamos tu és uma noção grande e enorme do vento
perguntas pelo tédio e não há nada igual a isso
por onde caminhar é a pergunta aberta
somos o que fomos sempre
iguais à hora ao minuto
tu comandavas eu ficava era eterno
como o destino de te ver caminhar
uma asa afastava uma intenção
era grave a hora para que tivéssemos para contar
o que fosse de extraordinariamente movido
não se indica mais nada
uma mão aberta fala uma linguagem austera.


antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995





26 setembro 2015

antonio gamoneda / o esquecimento é a minha pátria vigiada



O esquecimento é a minha pátria vigiada e ainda tive um país mais vasto
                e desconhecido.

Regressei no meio de um silêncio de pálpebras àqueles bosques em
                que fui perseguido por pressentimentos e propostas de homens
                enfermos.

É aqui onde o medo vê a força do teu rosto: a tua realidade no
                desaparecimento

(que se estendia como chuva no fundo da noite; mais lenta que a
                tristeza, mais húmida que lábios sobre o meu corpo).

Eram os dias grandes da traição.


Alimentava-me a fosforescência . tu criaste a mentira entre as per-
                nas da minha mãe; não existia a dor e tua criaste a compaixão.


Tu voltavas às hortênsias


e soluçaste debaixo da lente dos comissários.


Eu vi a luz da inutilidade.


A minha boca é fria nas preces. Este relato incompreensível é o que
                resta de nós. A traição prospera em corações invioláveis.


Profundidade da mentira: todos os meus actos no espelho da mor-
                te. E os carvões resplandecem sobre a pele de heróis ainda des-
                pertos no umbral da imbecilidade.


E esse alarido entre cristais, essas feridas que não são visíveis senão
                no instante do amor…

Que hora é esta, que erva cresce na nossa juventude?



antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2003



25 setembro 2015

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral



VI

As palavras pouco importam: um murro
no estômago, uma vez, alguns pontapés,
chumbo na escola a português, pra mais depressa ver
como se trama a vida, silenciosamente.
Quando se canta é diferente, a voz
pode quebrar-se contra o corpo, e quebra
alguma coisa por detrás da boca
como uma mão mirambolante e escura
que se viesse, dentro, na explosão
de pedaços de carne incandescente.
Acontece também cantar calado, ou com a boca
fundida nos lençóis, pra me esquecer de quem
agora me cavalga por um jantar no poço,
passeio de automóvel, duche morno,
e depois as moedas que se deixam
caídas no passeio como estrelas.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio&alvim
1999



24 setembro 2015

antónio dacosta / venho do mar



Venho do mar
Venho dos montes
Sê amiga do meu repouso

Se apeteço ser rei
Ter um barco e um cão
E dos meus amigos ser amigo

Sê benigna
Se me amas



antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



23 setembro 2015

andre breton / no teu lugar desconfiaria



No teu lugar desconfiaria do cavaleiro de palha
Essa espécie de Rogério libertando Angélica
Leitmotiv aqui das bocas do metro
Dispostas em fila nos teus cabelos
É uma encantadora alucinação liliputiana
Mas o cavaleiro de palha o cavaleiro de palha
Põe-te à garupa e ambos vos lançais na alta alameda de álamos
Cujas primeiras folhas perdidas põem manteiga nas rosas bocados de pão do ar
Adoro essas folhas tanto como
O que há de mais independente em ti
A sua pálida balança
De contar violetas
Apenas o necessário para transparecer nos mais ternos sulcos do teu corpo
A mensagem indecifrável capital
De uma garrafa há muito tempo no mar
E adoro-as quando se junta como um galo branco
Furioso na escadaria do castelo da violência
À luz dilacerante onde não se trata já de viver
Na clareira encantada
Com o caçador a apontar uma espingarda de culatra de faisão
Essas folhas que são a moeda de Danaé
Quando é possível chegar-me a ti até deixar de te ver
Estreitar em ti esse lugar amarelo devastado
O mais resplandecente do teu olho
Onde as árvores voam
Onde os prédios começam a ser sacudidos por uma alegria de mau porte
Onde os jogos do circo prosseguem na rua com um luxo desenfreado
Sobreviver
Do mais longínquo desprendem-se duas ou três silhuetas
Sobre o pequeno grupo ondula a bandeira parlamentar.


andre breton
l´air de l´eau (1934)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994



22 setembro 2015

amadeu baptista / o centro do mundo


7

Muito em breve irei pertencer a outra dimensão da terra.
Eu espero todos os continentes e todos os glaciares,
aguardo inequivocamente todos os céus onde hei-de
     encontrar
a impaciência do homem na solidão do mundo.
De novo anseio palavras elementares para descrever a viagem.
Todas as palavras que alguma vez usei são escassas
após o regresso para nova partida.
Procuro agora palavras cortantes como uma lâmina, inquietas
como uma ave, secretas como o olhar
de quem me julga e condena.



amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999



21 setembro 2015

alexandre o'neill / o café




                É difícil respeitar os mortos quando eles estão, positivamente, à mão de… semear. Como este.
                Vamos olhando para ele de soslaio e falamos baixo. Ora! O que temos é medo do dizque-dizque da vizinhança, ou não fôssemos uma decorosa família.
                A mãe está na cozinha, a fazer café. Cantarola, mãe, cantarola! Manda a vizinhança meter-se na vida dos outros (somos quatro inquilinos por piso, que diabo!). Cantarola, mãe, cantarola – que é o teu primeiro café de mulher livre!
                A mãe não cantarola, antes soluça. De espaço a espaço, um ganido discreto – mas o café está excelente, está forte, está CAFÉ! Pela primeira vez bebe-se café nesta casa!
                Mãe! Não era ele que estava sempre a dizer que o café o matava?


alexandre o’neill
as andorinhas não têm restaurante
publicações dom quixote
1970