06 janeiro 2013

antonio orihuela / o fato novo do imperador




Tenho 31 anos e estou cansado.
Todos os sítios me vão parecendo, finalmente,
igualmente maus.
Todas as pessoas, incluindo as que gostam de mim,
insuportáveis.
Não encontro sentido nem para o que faço
nem para as coisas que deixo por fazer.
Olho para os outros
com a absoluta certeza de quem vê
não semelhantes,
serenos, resignados, envilecidos extraterrestres.
Olho para mim
e sinto-me como se não tivesse outros com quem partilhar.
Para onde quer que eu olhe,
a insuportável mentira que faz ninho, germina, destila
este tempo, este país, este modo de viver
a que chamam
progressista, tolerante, solidário, democrático,
avançado, europeu, e melhor e melhor
que todos os existidos,
que todos os possíveis.
Este modo de viver
onde falta tudo o que foi nomeado.
Que desfez a classe trabalhadora sem uma única bala,
que encarcerou as consciências sem uma única grade,
que me afasta sem um único cassetete,
que me exclui sem um ferro candente,
sem sequer uma estrela amarela na lapela.

Este tempo
de fatos novos,
de Imperadores.




antonio orihuela
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




05 janeiro 2013

josé tolentino mendonça / a presença mais pura




Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
"a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?"

a altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
"a que distância deixaste
o coração?"




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



04 janeiro 2013

fernando guimarães / pedra




Fender aqui a pedra; procurar o que se torna
no seu próprio sentido; este peso. Assim se espera
que chegue um equilíbrio novo até podermos conhecer
o modo como diante de nós fica imóvel. O tempo
há de passar depressa. As mãos estão unidas
à sua volta e recebem o que nela estava mais distante
até se consumar em nós o que também há-de ser
a leveza.




fernando guimarães
relâmpago
revista de poesia 29/30
outubro 2011/abril 2012



03 janeiro 2013

edgar allan poe / só




Na infância, não fui como os outros
e nunca vi como outros viam.

As minhas paixões, não me vinham
de fonte igual à deles;

e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que despertava
o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.

Assim, na minha infância, no alvor
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;

e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;

e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,

só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demónio, ante meus olhos.



edgar allan pöe



02 janeiro 2013

luis buñuel / bacanal




Carneiro de 125 pesetas,
caracóis abundantes, manuais como o ventre da mulher de 150 pesetas;
os pães que o pobre come
podem ser amassados desse ventre
e cozidos com fogo de polegares.

Quando cruzamos os polegares para formar uma harpa
renova-se o martírio de S. Bartolomeu,
que, souberam depois, era um diabo
ou um fauno
que se ria da cruz.

Ao morrer comeram-no umas formigas de ouro
que tinham carne de moura
e cu de bailadeira.
S. Bartolomeu e o fauno dançavam
enquanto as pedras saíam disparadas da terra
como beijos atirados com a ponta dos dedos.

Do túmulo de S. Bartolomeu sai uma espiga de bronze
por cada beijo que pôde e não quis roubar.



luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977


01 janeiro 2013

antonio gamoneda / houve um tempo…


  

Houve um tempo em que as minhas únicas paixões
     eram a pobreza e a chuva.


Agora sinto a pureza dos limites e a minha paixão
     não existiria se eu soubesse o seu nome.


  
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999




31 dezembro 2012

herberto helder / elegia múltipla V




Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Ó feroz mundo puro,
ó vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.

Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti, quando é a altura das rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas?
─  Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
com uma canção fria e uma roseira
tão espalhada em mim.

Pode ser que fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha ardente agudeza escoar-se à maturidade
confluente
de um minuto de verão. - Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o verão com seus
símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.

─  Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive da sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.

─  Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.



herberto helder
elegia múltipla,poema v
poesia toda
assírio & alvim
1996



30 dezembro 2012

antoni clapés / sozinho frente ao mar




Sozinho frente ao mar. Não numa praia baixa, não, mas sim numa
abrupta e altiva escarpa. Não chegava até mim qualquer ruído: o
vento só me trazia o rumor do vento. Pelo meio-dia, comecei a
caminhar ao longo de um atalho paralelo â costa. Após um certo
tempo, descobri uma espécie de curral irregular, escondido no meio
das silvas. No entanto, nele não havia gado, nem sinais de alguma
vez ter havido. No centro daquele espaço fechado erguia-se um cubo
de pedra negra, com cinco palmos de lado. Ao aproximar-me, ouvi
saírem da minha boca sons que se articulavam em frases de uma
língua estranha; eu ignorava o seu significado, mas pressentia que
recitava textos de uma liturgia pretérita. Se me calava, reconhecia no
silêncio a minha voz, e vice-versa. Correndo como um possesso refiz
o caminho, para trás, para regressar ao lugar onde o meu itinerário se
tinha iniciado, com a pressa de descobrir o segredo daquela fala. Para
lá da névoa que começava a velar o horizonte distinguia-se,
tenuemente, a fina linha do esquecimento.




antoni  clapés
poemas                                      
tradução de egito gonçalves 



29 dezembro 2012

gil t. sousa / carta de alforria



                                      v de veneza


11

já escrevi tantas cartas
de alforria!

não que tivesse sido genial
ou poderoso

mas porque
fui um homem livre

hoje contemplo
a minha grande casa branca

a minha grande casa branca
em ruínas

e sei que valeu a pena
ter resgatado tantos e tanta coisa
ao vazio e á solidão

valeu a pena
porque conquistei o meu direito
a ter medo



gil t. sousa
água forte
2005


28 dezembro 2012

jorge luís borges / o forasteiro




Despachadas as cartas e o telegrama
caminha pelas ruas indefinidas
e nota leves diferenças a que não dá importância
pois pensa em Aberdeen ou em Leyden,
para ele mais vívidas que este labirinto
de linhas rectas, não de complexidade
aonde o leva o tempo de um homem
cuja vida verdadeira está bem longe.
Numa habitação numerada
fará depois a barba ante um espelho
que não voltará a reflecti-lo
e parecer-lhe-á que esse rosto
é mais inescrutável e mais firme
do que a alma que o habita
e que ao longo dos anos o vai lavrando.
Cruzar-se-á contigo em qualquer rua
e tu só notarás que é alto e grisalho
e que olha para as coisas.
Uma mulher indiferente
a tarde lhe dará e o que sucede
do outro lado de umas portas. O homem
pensa que esquecerá a sua cara e irá lembrar
anos depois, perto do mar do Norte,
a persiana ou a lâmpada.
Nessa noite, os seus olhos contemplarão
num rectângulo de formas passageiras,
o cavaleiro e a épica pradaria,
porque o Far West abarca o planeta
e espelha-se nos sonhos dos homens
que jamais o pisaram.
Na intensa penumbra, o desconhecido
crer-se-á na sua cidade
e surpreender-se-á ao sair numa outra
de uma outra linguagem e outro céu.

Antes da agonia
o inferno e a glória nos estão dados:
andam agora por esta cidade, Buenos Aires,
que para o forasteiro do meu sonho
(o forasteiro que fui sob outros astros)
é uma série de imagens imprecisas
feitas para o esquecimento.



jorge luís borges
nueva antologia personal
1968
trad. de nicolau saião


27 dezembro 2012

alberto caeiro / quando eu





Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.



alberto caeiro
o pastor amoroso



26 dezembro 2012

juan miguel lópez / julgamos que a vida nos escapa e na realidade a vida é isso


  

Às vezes fico com a vista parada
─  por exemplo numa parede ─
durante um bom bocado. os olhos
deixam de ver por fora e o corpo
parece que não o sinto. Então
normalmente dou-me conta
(e não mo explico e espanto-me)
desta coisa estranha que é viver,
e faço-me perguntas  que cortam
e o que sou concentra-se num ponto
e a única coisa que sinto é que eu
─  a voz que vive em mim e que me diz
isto e aquilo sem palavras ─ 
também serei menos um. Em breve.
Que tudo o que penso agora,
o que pensei e chegarei a pensar
há muito que não é nada.



juan miguel lópez
poesia espanhola, anos 90
organização e trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




25 dezembro 2012

andréas kálvos / a legião sagrada


  
Quase todos em trevas;
sobre poucos - estrela -
brilha a imortalidade;
o céu fez o homem livre
para escolher.



andréas kálvos
tradução de josé paulo paes