07 janeiro 2008
dores alternadas
à Irene que oiço no amachucar
de sedas que me vão lembrando
Eu penso em ti mesmo
que à tua volta nasçam sementes
Porque sou pelo feitio
de tremenda agudeza como testemunha
de certos males
o percurso idealizado pelo punhal
a ferida aberta para o receber a todo o instante
Eu penso em ti inevitavelmente
como comboios atropelando pássaros
Dobrando sobre o joelho
os pontos cardiais
a quebrar a vingança
Porque sou neste espaço de solidões
o bafo de inventar imagens
na vidraça da janela
(Mas todas as que surgem são já conhecidas e insistentes)
Se não puder mais que pensar em ti
deixo que se me gaste o pensamento
a reduzir sentido por sentido
letra por letra o alfabeto o só
com que nos entendemos
Porque sou o desejo de voltar a andar
pelo colo das pessoas crescidas
a espreitar-lhes para dentro das orelhas
Arrecadar-te-ei sobre a minha infância
que não foi estudada
Mesmo que as rotas perdidas para me cruzarem
se encontrem
Mesmo que tenha de esquecer o vidro
para dobrar o fogo
Porque sou o percurso banal
de todos os pensamentos
feito à conta de esquecer
os que de pensamento se tornaram irrealizáveis
E se te tirarem a nossa máscara?
Guardarei o molde na parede que se me esvai
no sabor a lagos distantes com peixes esquecidos
e penso em ti
Porque sou a lei de puxar as crianças
do recreio do céu
e de desastrado piso-as
Estou a poisar na testa selvagem de qualquer animal
e mostrar ao menos que não há rendição
Ando de gatas procurando o mundo
o equilíbrio de me mascarar de sombra
e partir do momento em que ela passou
a andar de pé e a tomar conta de mim
Onde quer que seja guardarei
metade de tudo sempre que
acreditando que a outra metade nunca
Quis soprar o pó e apaguei
E sou ridículo por adivinhar-te
nos minutos que gastam pó pelas minhas janelas
Cá do colo ouço a espreitar-te
e vivo a monte por entre tantas frinchas de liberdade
nas janelas abertas como orelhas
por onde passam os teus passos
perseguindo-te novamente
Faço secar as flores venenosas
estendidas num vai-e-vem estreito como a guerra
Fico através dos instantes que passam sem mim
com o gosto de esforço inútil
a mastigar areia
Penso em ti inevitavelmente
e sou a faca clandestina
que fez da cidade fatias
Quiseste apagar a vela e desfizeste
o pó que juntei para o meu destino!
Uso a palavra amor
para que ele me chame à morte.
fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004
02 janeiro 2008
obsessão
Recta, fixa, longa, para lá, diante…
E em memória, ainda,
A corneta agreste
Daquele circo equestre…
- Que vida, meu Deus! Que mundo!
Que dolorosa agonia!
… E muito fria,
(Tão fria!)
Corre a estrada para lá…
Só num desvario profundo
Choram palhaços… Quem ria?
Fria
A rua
Continua.
- Quem vem lá?...
Meu Deus, que festa
Foi esta?
Quem se ria já não está.
Só a noite cai, caindo
Dilúvios de luz de estrela…
- E aquela orquestra
Da festa,
Que mentira foi aquela?
- Pobres palhaços,
Pedaços
De gargalhadas caindo,
Repartindo
Gargalhadas!
… E continua irritante,
De dolorosa e calada,
A fita da mesma estrada
Recta e longa para diante…
antónio pedro
devagar (1929)
antologia poética
editora angelus novus
braga
1998
30 dezembro 2007
remate para qualquer poema (ou qualquer ano, digo eu)
passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se reflectiram desertaram
ruy belo
todos os poemas I
assírio & alvim
2004
25 dezembro 2007
as maneiras
(Tive uma alucinação: vi abertamente no espaço uma mão clara e imóvel. Um meu amigo assistiu ao intempestivo voo da sua própria mão direita através de uma praia, por sobre uma multidão de portugueses que devorava coisas. Além disso, escrevi duas páginas sobre as mãos de um assassino, que cumpriram a extrema tarefa de estrangular uma criança.)
«Mes mots sont des crimes» — disse o jovem suicida Jean-Pierre Duprey.
Mes mains sont des crimes — digo eu.
Mes mains et mes sculptures sont des crimes — diria o escultor.
Então, era assim o atelier: um espaço intenso e agressivo. Era o espaço do crime, O lugar onde as mãos haviam caminhado até ao seu limite. Tinham assumido um crime redentor.
Vejo a paisagem com seus eucaliptos de folhas em quarto lunar, as neves extraordinariamente sem pistas, grandiosas pedras polidas, nuvens, areias, salinas e águas. E o Sá-Carneiro diz: «A natureza que é para o artista? Coisa alguma.» Meu Deus, é preciso então subverter tudo. Aqui está o crime. O homem é o crime. Esta maravilha de encostar a paisagem ao muro e despejar-lhe em cima uma boa metralha. É o nosso crime — o do homem.
Eis as mãos do escultor, por este atelier fora, fazendo atentamente o seu crime. Violentas florações de ferro, cadáveres modernos onde uma nova vida subtil parte de um coração monstruoso, fixações de uma corrente electromagnética que atravessa a noite de Domingo (Dia do Senhor) para a manhã de segunda-feira (que é na realidade o primeiro dia, aquele em que rebenta a luz). O nosso terror atingiu a claridade que lhe é própria. Ficou um campo de grandes lâminas de ferro, couraças, pulmões, falos — toda uma simbologia do entusiasmo nocturno, da inteligente e terrífica onda que de repente nos conduziu até à madrugada. Que bom não ter de dar pelo nome de crítico — mas possuir só, para esgotar, um momento crítico, uma vida inteira extremamente crítica.
Passo pelo meio das esculturas, agora sem o escultor, e nada há que eu não saiba.
Sei de uma tremenda morte no lado esquerdo da escultura a ser, e a ressurreição nesse deserto amoniacal. Porque habita aqui a árvore da vida, a árvore petrificada que deu folhas e flor de dentro do sono. Deambulo por esta nação seca e vejo o objectuário selvagem; as falésias, colinas, baías e promontórios internos; e o silêncio de uma vegetação abstracta; o terrível paraíso da imobilidade. De súbito, uma ave de rapina arrebata o animal inocente, e o céu foge por esse instante fora. Céu de ferro trabalhado por pequenas estrelas corrosivas.
Afinal temos a nossa voluptuosidade negra, os nossos espelhos, o círculo vertiginoso dos corpos e a pormenorizada obsessão do nosso conhecimento. O desejo tem as suas formas, os espelhos replicam às nossas formas, as nossas formas possuem as suas próprias formas, o conhecimento encontra as suas formas. Tendemos a formar-nos, a formar o mundo, a reformar o mundo, dentro e fora. O mundo é a nossa forma de estar no mundo, e fomos nós quem inventou essa forma. Chamemos-lhe escultura. As mãos são doces e rebarbativos instrumentos e, num sentido mais próximo da sua dinâmica natural, são o acto de formar concretamente o espírito na matéria do tempo.
E agora cá temos o escultor, surgindo do fundo dos bastidores, onde não há sinal de estrelas. Vem das suas trevas. Quando é suficientemente apanhado pelas luzes, diz: Nada na manga. E, se conseguimos regular pelo seu o nosso ritmo de inspiração e expiração, descobrimos a pequena maravilha de que ele, na verdade, nada esconde na manga.
Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.
Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda de sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está escuro — responde a mulher.
A parábola ajudará a desaprender alguma coisa, e depois será possível aprender outra coisa.
herberto helder
retrato em movimento (1961-1968)
poesia toda 2
plátano editora
1973
18 dezembro 2007
finita melancolia
todos os cânticos no gume lunar da água
recolhe a noite da remota língua
que te deixo como herança este aro de ferro
esta quilha de ventos apagando a memória
onde a topografia da morte nos aprisionou
a cinza das horas veste o ferido corpo
abandonado na milenar paisagem de grafite
fulgura o indício do magoado desejo
na densa escuridão dos teus passos
l
ergue-se a tarde do mar e sepulta
o corpo que recusa as notícias do mundo
e na corda azulínea das ondas arde o olhar
daquele que de ti se aproxima insone
talvez não haja mais palavras depois
deste últimos versos o rosto esquecido
contra o vidro a unha rasgando o nome
na poeira indica ao cansado navegante
o límpido plâncton da morte
l
o mínimo de tinta dentro da palavra
faz vibrar o eixo do tempo: a casa
onde o rumor procurado se ouve tímido
em teu peito adormecido como um rio
nos confins minerais do corpo nada impede
a floração quente da terra ou a tristeza
que na plúmbea água reacende a vida e
no limiar das obscuras mãos faz tremer
o coração da finita melancolia
l
o olho avança espiando a escuridão
sobre a pele vibra a boca daquele
que fala com uma víbora na língua
seduzindo o que no silêncio escuta
a dor vem como um estilete perfura
o xisto das artérias onde estrelas turvam
os sentidos daquele que escrevendo mata
o que escuta e o que fala
tudo se dilui na cegueira lenta de querer
o que dos corpos a escrita tenta guardar:
pequenos ossos caídos no fogo das emoções
l
os ombros queimados pelos negros sinais
duma idade em que a fala e os gestos
transbordavam cúmplices de um para o outro
levantas por fim a carta recebida ontem
contra a luz fosca da janela descobres
mil presságios na rubra poeira da tarde
regressas depois aos corpos e às cidades
enroscadas em sórdidos quartos onde pernoita
o amargo medo desta década sem paixão
l
o resplendor do sangue sufoca-te a boca
que já não pergunta nem responde nem sorri
e o sopro dos oceanos atordoa-te o corpo
naufragado na fímbria dos meus sentidos
imagina agora uma flor ou um revólver
na hulha nocturna disparando sémen ou
uma bala de ouro perfurando o peito
daquele que soube fingir a felicidade
e no centro dos seus olhos o poço
onde agoniza tua cabeça de cinza
iluminada
l
vivemos hoje num corpo cego e voraz
onde nenhuma cicatriz brilha ou fissura
a misteriosa memória da paixão arruinada
pernoitamos onde nos deixam e o coração
não é um relógio nem um espelho nem
a gazua para abrir venenosos segredos
ninguém dançará de alegria
sobre os vestígios incandescentes
de nossa alma carbonizada
al berto
finita melancolia
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990
16 dezembro 2007
agora que o caminho que devo percorrer
agora que o caminho que devo percorrer
é uma passagem sobre a estrada
que mete medo olhar, porque o abismo
implacável me chama.
agora que a esperança morreu
como um pássaro arredado do seu ninho
por irmãos mais fortes.
agora que é de noite todo o dia,
inverno todo o ano
e a semana só tem segundas-feiras,
onde olhar, onde virar os olhos,
que não encontre os olhos da morte?
amália bautista
estoy ausente
trad. g.s.
pretextos
valência 2004
do sermão de santo antónio aos peixes
Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: Governador do mar e da terra, para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com os homens na terra observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem (1). Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo após o bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Proedo minorisfit proeda majoris (2).
Mas não bastam, peixes, estes exemplos, para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes. Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que daqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos? Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes; contra vós se tecem as nassas; contra vós se torcem as linhas; contra vós se dobram e farpam os anzóis; contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com urna guerra mais que civil, e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim e sereis felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza, Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies de todos se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na Arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum, que Noé lhe repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, por que o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade, e será maior virtude.
Outra coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima, em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e por quê? Porque houve quem os engodou, e lhe fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honra da e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não tem gasto. E que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra; dá-lhe uma sacadela e dá-lhe outra, com que cada vez lhe sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos; e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça ou na cana, ou no engenho ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias. Pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua. E para isso se matam todo o ano!
Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas, não é maior ignorância e maior cegueira deixares-vos enganar, ou deixares-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.
(1) «Tem cuidado, não caias nas mãos de um mais potente, quando vais em perseguição de um outro.»
(2) «O ladrão do menor acaba por ser vítima do maior.»
padre antónio vieira
sermões
10 dezembro 2007
cães com nome
Não sei quem te perdeu
se eu se outro alguém
— oiço cães velhos
a ladrar lá fora,
os mesmos cães de sempre
que tu também ouvias
abafadamente pela janela,
com o teu ponto cruz
as minhas telas
os nossos filmes e CDs,
a nossa casa,
o nosso lar,
os nossos cães
05 dezembro 2007
andrei tarkovsky / os primeiros encontros
cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.
arsenii tarkovskii8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987
02 dezembro 2007
ana merino / carta de um náufrago
caminharei devagar.
e eu, que estarei cega pelo frio,
farei paragens breves,
sacudirei o guarda-chuva e começarei de novo.
imensamente cheio de verdades.
Não aceitar nunca os convites
que o nevoeiro
sugere ao fazer ninho com os seus disfarces
de paisagem feliz, de grandes sonhos.
alguém sairá a procurar-me,
e levará o calor de uma garrafa
onde poderei mandar-te esta mensagem.
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
27 novembro 2007
solidão de papel
não me fales mais
dessa solidão de papel
eu ainda tenho a sede das oliveiras
a paciente sede
dos rios que nunca chegam
dos rios avistados
que não se podem tocar
eu ainda tenho a dor da terra queimada
a fortíssima dor
das chuvas que não voltam
das raízes que morrem
sem poder gritar
o teu nada
é só mais um perfume!
e eu
eu tenho sangue na voz
tenho no peito o grito do lobo
a imensa tristeza de uma lua
que o céu não quis
gil t. sousa
poemas
2001