Trata-se mesmo deste objecto: cabeça de cavalo
descomunal onde se incrusta toda uma cidade, com suas ruas e muralhas a correr
entre os olhos, colando ao meandro e ao alongamento do focinho. Um homem soube
construir com madeira e papelão esta cidade, e iluminá-la lateralmente com uma
verdadeira lua, trata-se mesmo deste objecto: a cabeça de cera duma mulher a
girar, descabelada, no prato dum fonógrafo.
Tudo coisas daqui, terra do vime, do vestido, da
pedra, isto é: terra da água nos vimes e nas pedras, terra dos vestidos
manchados. Este riso coberto de sangue, é o que vos digo, traficantes de
eterno, rostos simétricos, ausência do olhar, pesa mais na cabeça do homem do
que as perfeitas Ideias, que só sabem desbotar sobre a sua boca.
Que sentido atribuir a isso: um homem fabrica com
cera e cores o simulacro duma mulher, adorna-a com todas as parecenças,
obriga-a a viver, dá-lhe, graças a um sábio jogo de luzes, essa hesitação no
limiar do movimento que o sorriso também exprime.
A seguir, munido dum archote, abandona o corpo
inteiro aos caprichos da chama, assiste à deformação, às rupturas da carne,
projecta no instante mil figuras possíveis, ilumina-se à custa de inúmeros
monstros, sente como uma faca essa dialéctica fúnebre em que a estátua de
sangue renasce e se divide, na paixão da cera, das cores?
yves bonnefoy
sonhador definitivo e perpétua
insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua
francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021