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09 janeiro 2013

maria gabriela llansol / meu deus, agora o amor está sujo




5 de Março de 1995



__________________________________________________________________________ Sandra,


   Meu Deus, agora o amor está sujo. Numa bacia. Sujo, como é possível? Não penses que é uma pergunta, é antes uma não-pergunta, ou o espanto antes da pergunta, o puro lugar do in-compreender. Uma morte,
que voz a traz,
a aproxima de nós e nos enxovalha o olhar?
    Que o sólido existe, existe,     como a natureza vegetal existe. Basta olhar como se decompõe o madeiro da árvore.
    Que o líquido existe, existe,     como a natureza animal existe. Basta ver como se liquefaz um corpo.
   Mas não será preciso, meu amor, tornar mais inteligível, mais percuciente, mais feroz, em suma, mais irradiante, a natureza evanescente, real e vaporosa, das figuras
que sempre fomos,
esses animais magníficos de uivo vibrante,
em vias de extinção?
    Com os olhos, a rapariga que saiu do texto («Não sintas ciúmes! Não há nada disso entre nós!») diz-me que sim, mas com a boca pronuncia:
    ─ Que coisa incompreensível termos vivido com um nome próprio.




maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996



03 novembro 2012

maria gabriela llansol / estou de pé sobre a fronte apelativa...


  

4

Estou de pé sobre a fronte apelativa de uma imagem de mulher.
E por onde ela me atrai, principia a circular meu desejo; afinal,
Converso com ela; mais exactamente, ela fala comigo, pois eu
Raramente abro os lábios. Apenas por olhar me identifico.
Que inventar para lhe pôr na testa? Nada de parecido com um beijo.
Com um desafio. Sinto
A força dos cavalos à deriva. Vejo que meu corpo se senta, se deita,
Pousa a cabeça no chão, pelo lado da cara. Choro em torrentes nesse
Corpo total. Muitas são
As lágrimas que merece a alegria de conhecer.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




30 setembro 2012

maria gabriela llansol / sua paixão é ter paixão



  
100

Sua paixão é ter paixão, não uma paixão. Tanto
Quanto um traço pode ser explícito. Vê-se na
Relação entre o fora e o dentro. Rapaz a pique,
O dentro emite, o fora transparece, o dentro
Recebe para emitir uma vez mais e não se repetir.
Ar, sangue, pulsações, estratégias giras de
Conhecimento, uma acção radical por dia,
Várias ogivas prontas a dar. E ela disse-lhe:
«Ok! E se deixasses de esmolar?»




maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




03 janeiro 2012

maria gabriela llansol / estas árvores balouçam na sua hesitação




190



____________ Estas árvores balouçam na sua hesitação
Mas prosseguem. Os ramos mais altos precipitam-se,
Abrem no ar pousadas. Os mais baixos ocupam. Sol não
Falta. Há apenas a curva do caminho com incidências
Drásticas na sua respiração. Sim, há ainda as concorrentes,
As sementes ininterruptas, e o incompreensível desprezo
Dos humanos. Parasceve não diz. Se o cortarem, não
Reagirá. «Por que não entendeis a leveza de prosseguir?»




maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




29 julho 2011

maria gabriela llansol / XCII. beirais

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__________ se estiveres ausente ( automóvel, comboio, avião, mudança de estação ou de cidade ), compra um papel simples que te comunique e envia-mo pelos meios mais eficazes ao teu alcance, e que te revelem como comprimido a desfazer-se debaixo da língua.





maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & Alvim
2006
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17 outubro 2010

maria gabriela llansol / fui dar com ela no quarto a chorar






340


Fui dar com ela no quarto a chorar, o telemóvel
Atirado para um canto. Entre lágrimas, foi dizendo
(E tem doze anos) que seu amigo decidira que deviam
Esperar. Sua mensagem: «Só o amor verdadeiro está
Por vir». É ténue a diferença (pensei) entre um galã
E um filósofo. Mas ela, sobretudo, descobrira que os
Novos instrumentos «mordem» tanto como os antigos,
Salvo que muito mais depressa. A mentira vende. Para
A publicidade, na nova comunicação é impossível a má
Notícia. Por que não trocam com os jornais?






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003







09 junho 2010

maria gabriela llansol / se eu fosse aquela em que tu







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«Se eu fosse aquela em que tu
Pensas, a que tu tens amor», dizia
Insistente a canção, à luz daquele
Candeeiro da Belle Époque. Tinha
Oito anos e olhava para o garoto
Sobre o seu supedâneo. Estive para
Dizer «Eu sou aquela em quem tu
Pensas» e estive para não dizer. E se
Tivesse dito? Seria aquele semântico
Tu que sempre me diria. E se dito não
Tivesse? Meu Eu gramatical ficaria
Apenas meu, é certo… mas tão incerto.








maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





01 fevereiro 2010

maria gabriela llansol / saber esperar alguém







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Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003








06 abril 2009

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso






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Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





03 março 2008

maria gabriela llansol (1931-2008)





xc. dos seres





_________se ele ainda estiver a dormir quando eu voltar ao quarto, e o clavicórdio continuar a reger o abismo com a sua simples presença e a sonoridade que pressinto,
sento-me à entrada da ausência, aspirando o meu vagar nocturno e o movimento dos músculos das árvores,


lugar particular ali,
lugar universal aqui.







maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & Alvim
2006



27 junho 2007

hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo


22 de agosto de 1994



Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
eu pode-
ria escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos
mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imã-
gens
que, aos que tomam este caminho,
lhes falam constantemente da sua irrealidade. O mundo.
Mas qual? No meu
combatem-se
existentes poderosos contra reais talvez inviáveis — o «é as-
sim» dos cínicos contra o «tenhamos um amor comum», de
Eckhart.
Basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-
-me voltar atrás para me encontrar no meu. Algures, no meu
corpo, entre atravessar e voltar atrás, houve o embate das
imagens.
Da televisão que vejo ao texto que escrevo, a distância é
incomensurável.
Não preciso carregar no botão para encontrar nos textos
que eu der a ler, inapagáveis, imagens próprias e não eféme-
ras — se os olhos de quem os ler forem também inapagáveis.
No tracejado desse inapagável, formam-se olhos que são es-
pelhos para as imagens reais de todos o territórios nómadas
que criamos, e vamos trocando entre eles e nós.
Lembro-me, a propósito de imagens, da frase de uma can-
ção que ouvi há anos:

«se eu fosse aquela em quem tu pensas, a quem tu tens
amor...»


Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:


que ouço na rua as patas dos cavalos; que vou sair;
que vou pentear-me;
que vou vestir o casaco;
que está um dia nublado;
que há tantos outros (não os outros) que existem, que-
rem ser reais,
e não morrer.


Afirmo que ir sair e não querer morrer me parece, de
súbito, uma espécie de constituição das imagens como se ne-
las houvesse uma certa matéria consciente e imperecível para
lá do corpo que a si própria perguntasse de que modo trazer o
que é vida corrente para o invisível não tomado pela morte.

Não posso perguntar. A escrever tenho de saber, na maior
das certezas.









maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996







31 janeiro 2007

LXXIX. na noite obscura





alguém roubou uma tecla ao piano, sentiu, de súbito, o seu coração dividido, uma nota que um ladrão roubara dessa carreira ________ ouviu-se um som plangente.
Se não levou toda a carteira, evaporou-se aquela parte da melodia nas mãos de alguém. E o piano perdeu o seu fragmento de potência. Não ergue mais todo o falo, foi o que sentiu o desvario da mulher _________ e desejou que a tromba do elefante se levantasse, e fosse procurar o cavalo derrubado no mar, onde vivia, à tona, um bando de noctívagos que consumiam ansiedade e pobreza. A nota estava com eles. Para que fossem destruídos pela fome ancestral/angélica que traziam no ouvido.


Uma tecla musical desaparecida corresponde a urna pessoa sem vista para quem vê. Essa moeda de olhar cego,
onde brilharia? Onde estava o cego?
À distância a que se encontra a mulher de outrora da mulher da noite obscura. Na esquina de uma rua, a vender doces de solidão.
— Quem quer doces da noite obscura? — apregoava. — Aí estava o cego, à margem das páginas que, à sua volta, se suicidavam.
Apregoava: «Doces da noite obscura. Doces de solidão».

E muitos jantavam unicamente esses doces, sem nenhum gosto, a não ser o da noite que os guiava ________ a alguns, muito poucos.





maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & alvim
2006



28 fevereiro 2005

book zapping #005 maria gabriela Llansol

o raio sobre o lápis




V

a conclusão de que não há abismo, e que a infância não
pára de desenvolver-se e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice:
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das
metamorfoses flutuantes; é já dia, mas a noite que con-
duz a esperança no pensamento, e sobre si própria, não
acabou.
Não acabou definitivamente;
onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
«Olha-os, e não os mates.»




O Raio Sobre o Lápis
de Maria Gabriela Llansol
desenhos de Julião Sarmento
Assírio & Alvim
Novembro de 2004