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17 fevereiro 2019

bernardo soares / não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio.




Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.

As minhas leituras predilectas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de escrever objectivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.

O estilo afectado, claustral, fruste, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.

Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, é por bosques de maravilha que oiço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982





10 fevereiro 2019

bernardo soares / a leitura dos jornais, sempre penosado ponto de ver estético,




A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso — chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrificio de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca (...) — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







03 fevereiro 2019

bernardo soares / chove muito, mais, sempre mais...



Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma […] que vai desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.

Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela.

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição sinto-me matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






11 novembro 2018

bernardo soares / com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.




Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.

Como quem visita um lugar onde passou a juventude, consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-lo. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.

Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre do soldado de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.

Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.

Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrui momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais [...] me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro mentolado, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que subtil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as [...] de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo inevitavelmente perdido.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









28 outubro 2018

bernardo soares / enrolar o mundo à volta dos nossos dedos,




Enrolar o mundo à volta dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.

Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.

Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo (: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas).

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982









16 setembro 2018

bernardo soares / entre a vida teórica e a vida prática há um abismo,




Entre a vida teórica e a vida prática há um abismo, sobre o qual alguns, mais individuais, não sociais são ponte.

Manda quem quer, servo de pensamentos dispersos, anónimos, que por tais não são pensamentos.

Deixemos a acção àqueles que pensam pela cabeça alheia, pois que existem só para agir. Recolhamo-nos ao jogo alado, fútil até, das teorias, desiludidos de qualquer possibilidade de podermos agir sobre os outros, de sermos mais na vida que forasteiros.

Desdenhadores de todos os ideais, sobretudo dos que buscam a felicidade na terra para os outros — pois a felicidade não pode ser ideal senão para nós — vivamos separados, como os outros iniciados, os da alma (para além da inteligência), que nada, também, querem ou esperam da vida. Assim o visionista seguirá a par do adepto, entre as minas do templo de Salomão, e por aquele plaino próximo onde, um tempo, o Mestre esteve sepulto.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990







05 agosto 2018

bernardo soares / como diógenes a alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol.



Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho (...)

Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco uma linha recta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha recta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo activamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejo sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tacto; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.

Nunca soube se era de mais a minha sensibilidade para a minha inteligência ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma a outra, ou foi a terceira que tardou.

s.d.

fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






17 junho 2018

bernardo soares / assim soubesses tu compreender o teu dever…




Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos nos sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens puras da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fosse possível ver-te sem pensar n'outra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas no fundo d'outras épocas, onde invisíveis homens diversos vivem sentimentos que não temos.

Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de (...) os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impensáveis.

A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligando as duas margens escuras do rio que vai ter ao mar — ao mar onde as caravelas são novas para sempre.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
europa-américa
1986







03 junho 2018

bernardo soares / declaração de diferença


(para ser inserta no Livro do Desassossego)


As coisas do estado e da cidade não têm mão sobre nós. Nada nos importa que os ministros e os áulicos façam falsa gerência das coisas da nação. Tudo isso se passa lá fora, como a lama nos dias de chuva. Nada temos com isso, que tenha que ver ao mesmo tempo connosco.

Semelhantemente nos não interessam as grandes convulsões, como a guerra e as crises dos países. Enquanto não entram por nossa casa, nada nos importa a que portas batam. Isto, que parece que se apoia num grande desprezo pelos outros, realmente tem apenas por base o nosso apreço céptico por nós próprios.

Não somos bondosos nem caritativos — não porque sejamos o contrário, mas porque não somos nem uma coisa, nem a outra. A bondade é a delicadeza das almas grosseiras. Tem para nós o interesse de um episódio passado em outras almas, e com outras formas de pensar. Observamos, e nem aprovamos, nem deixamos de aprovar. O nosso mister é não ser nada.

Seríamos anarquistas se tivéssemos nascido nas classes que a si próprias chamam desprotegidas, ou em outras quaisquer de onde se possa descer ou subir. Mas, na verdade nós somos, em geral, criaturas nascidas nos interstícios das classes e das divisões sociais — quase sempre naquele espaço decadente entre a aristocracia e a (alta) burguesia, o lugar social dos génios e dos loucos com quem se pode simpatizar.

A acção desorienta-nos, em parte por incompetência física, ainda mais por inapetência moral. Parece-nos imoral agir. Todo o pensamento nos parece degradado pela expressão em palavras, que o tornam coisa dos outros, que o fazem compreensível aos que o compreendem.

A nossa simpatia é grande pelo ocultismo e pelas artes do escondido. Não somos, porém, ocultistas. Falha-nos para isso a vontade inata, e, ainda, a paciência para a educar de modo a tornar-se o perfeito instrumento dos magos e dos magnetizadores. Mas simpatizamos com o ocultismo, sobretudo porque ele soe exprimir-se de modo a que muitos que lêem, e mesmo muitos que julgam compreender, nada compreendem. É soberbamente superior essa atitude misteriosa. É, além disso, fonte copiosa de sensações do mistério e de terror: as larvas do astral, os estranhos entes de corpos diversos que a magia cerimonial evoca nos seus templos, as presenças desencarnadas da matéria deste plano, que pairam em torno aos nossos sentidos fechados, no silêncio físico do som interior — tudo isso nos acaricia com uma mão viscosa, terrível, no desabrigo e na escuridão.

Mas não simpatizamos com os ocultistas na parte em que eles são apóstolos e amadores da humanidade; isso os despe do seu mistério. A única razão para um ocultista funcionar no astral é sob a condição de o fazer por estética superior, e não para o sinistro fim de fazer bem a qualquer pessoa.

Quase sem o sabermos morde-nos uma simpatia ancestral pela magia negra, pelas formas proibidas da ciência transcendente, pelos Senhores do Poder que se venderam à Condenação e à Reencarnação degradada. Os nossos olhos de débeis e de incertos perdem-se, com um cio feminino, na teoria dos graus invertidos, nos ritos inversos, na curva sinistra da hierarquia descendente.

Satan, sem que o queiramos, possui para nós uma sugestão como que de macho para a fêmea. A serpente da Inteligência Material enroscou-se-nos no coração, como no Caduceu simbólico do Deus que comunica — Mercúrio, senhor da Compreensão.

Aqueles de nós que não são pederastas desejariam ter a coragem de o ser. Toda a inapetência para a acção inevitavelmente feminiza. Falhámos a nossa verdadeira profissão de donas de casa e de castelãs sem que fazer por um transvio de sexo na encarnação presente. Embora não acreditemos absolutamente nisto, sabe ao sangue da ironia fazer em nós como se o acreditássemos.

(from above) Tudo isto não é por maldade, mas por debilidade apenas. Adoramos, a sós, o Mal, não por ele ser o Mal, mas porque ele é mais intenso e forte que o Bem, e tudo quanto é intenso e forte atrai os nervos que deviam ser de mulher. Pecca fortiter não pode ser connosco, que não temos força, nem sequer a da inteligência, que é a que temos. Pensa em pecar fortemente — é o mais que para nós pode valer essa indicação aguda. Mas nem mesmo isso às vezes nos é possível: a própria vida interior tem uma realidade que às vezes nos dói por ser uma realidade qualquer. Haver leis para a associação de ideias, como para todas as operações do espírito insulta a nossa indisciplina nativa.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









15 abril 2018

bernardo soares / apoteose do absurdo




Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.

Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.

E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990






11 março 2018

bernardo soares / a maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia...




A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia. A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros ainda se perdem (...)

Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados — não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas. Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.

Alheia a isto e chorando só o preciso e no menos tempo que pode — quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários — quando pensando [...] e chora enquanto não arranja [?] outro, ou se não adapta ao estado de perda — a humanidade continua digerindo e amando.

A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas.

Quando vejo um gato ao sol lembra-me sempre do homem ao sol.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990








25 fevereiro 2018

bernardo soares / às vezes, em sonhos distraídos, que me surgem das esquinas...




Às vezes, em sonhos distraídos, que me surgem das esquinas do pensamento e da emoção, visiono amores. Uma vez me encontro desenrolando um enredo de uma paixão correspondida por uma tuberculosa génio, que havia escrito o seu livro imortal na esperança de não sei quê, sempre, coitada, à janela da casa caiada. Outras vezes é a marquesa, que mora na quinta alta, que, quando me conheceu residente perto de ali onde eu nunca estaria, me atrai a si sem querer; o nosso amor desenvolve-se sem história, e há uma grande conclusão. Outras vezes ainda o romantismo deixa as tuberculosas e a aristocracia, e há uma grande simplicidade nos desejos sonhados: ela foi encontrada entre a vida como uma flor entre ervas altas, colhi-a para o meu lar limpo e lindo, e a minha vida, pelo menos até onde vai o sonho, dorme quietudes entre sinceridades, e tudo é afago.

Ah, que enredos complexos, em conveses de navios, em ilhas distantes, em hotéis universais, em viagens passageiras, me não encantam a distracção como vestidos expostos.

Mas, de repente, e com um regresso de pesadelo estatelado, desperto do meu romantismo sexual, e coro a sós comigo de fazer com a mente de dentro a mesma coisa que fazem todos os homens. E tenho, como timbre de fidalguia fraseada, a vantagem ridícula de contra. Sim, às vezes, sonho deste modo. Às vezes sou costureira masculina, e tenho príncipes, que são princesas, e muitas vezes são outra coisa, na imaginação inevitável.

E então acordado de todo, rio, quase alto, de me ver assim, como se me visse nu por baixo da nudez, como se me conhecesse esqueleto da alma, e uma alegria ponteaguda valsa nos meus devaneios. Que tristeza!

s.d.




fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990







04 fevereiro 2018

bernardo soares / e hoje, pensando no que tem sido a minha vida,




E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações suburbanas. A imagem é estúpida, porém a vida que defini é mais estúpida ainda do que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, como meias ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos extremos curvos se o bicho estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco ao longo dos dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquece.

Esqueci-me que falava de mim com a descrição do cesto. Vejo-o nitidamente, e ao braço gordo e branco queimado da criada que o transporta. Não consigo ver a criada para além do braço e a sua penugem. Não consigo sentir-me bem senão — de repente — uma grande frescura de (…) daqueles varais brancos e nastros de (...) com que se tecem os cestos e onde estrebucho, bicho, entre duas paragens que sinto. Entre elas repouso no que parece ser um banco e falam lá fora do meu cesto. Durmo porque sossego, até que me ergam de novo na paragem.

5-4-1930


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






28 janeiro 2018

bernardo soares / carta para não mandar




Dispenso-a de comparecer na minha ideia de si.

A sua vida (...)

Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.

Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique, mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









17 dezembro 2017

bernardo soares / máximas




Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido — tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver é um doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio (e o único modo de vida que a um sábio convém e aquece).

Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.

A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito.

E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadeza ímpar. O que desloca a vulgar saudação — como está? — de ser uma indesculpável grosseria e o ser ela em geral absolutamente vã e insincera.
Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos).

Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os actos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros — para saber bem, ao agir ao contrário, quem somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem.

s.d.

fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982





19 novembro 2017

bernardo soares / absurdo





Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é (o) divino.

Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam — talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo.

Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







12 novembro 2017

bernardo soares / a divina inveja



Sempre que tenho uma sensação agradável cm companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo.

A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.
A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazem-me notar como seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.

Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a tomá-lo irrefragavelmente meu — de alterar, mentindo — o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente — e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.

Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquitecto muito mais.

Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais — curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar. O meu triunfo máximo no género foi quando, a cena hora ambígua de aspecto e luz olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos — curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço cetim, não sei como, sobre o espaço que perdura a abominável terceira dimensão.

E a hora cheira-me verdadeiramente a um ruído [...] e longínquo e com uma grande inveja de realidade...

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982



29 outubro 2017

bernardo soares / falo abismos... alastro-me em sonhar desmedido



Falo abismos... Alastro-me em sonhar desmedido, cheio de ver explicações... Fervilho em compreensão... Sou todo aéreo de perceberes...

Ouro de mim, sonhei-me em poeira, e o vento da realidade, erguendo-me, dourou do que eu fui as árvores e os casebres do caminho...

(Não te importe que isto assim fosse... Antes ser o ouro sobre os casebres que os casebres sob o ouro.)

Não te entristeças. Eu reinei no que nunca fui.

A abstenção da Carne foi uma coisa heráldica em mim...

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990




15 outubro 2017

bernardo soares / a única maneira de teres sensações novas...




A única maneira de teres sensações novas é construires-te uma alma nova. Baldado esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires-te de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós as sentimos — há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? — e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las.

Mudar de alma. Como? Descobre-o tu.

Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.

Não descer nunca a fazer conferências para que não se julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para falar com ele. Se ele quiser que nos leia.

De mais a mais o conferenciador semelha actor — criatura que o bom artista despreza, moço de esquina da Arte.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982