19 maio 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação do delírio de interpretação





Quando se acabou este amor, encontrava-me como a ave no ramo. Já não servia para nada. No entanto observava que as manchas de petróleo na água me devolviam a minha imagem e apercebi-me de que a Pont-au-Change, junto da qual se encontra o mercado das aves, se curvava cada vez mais.

Foi assim que um belo dia passei para sempre para o outro lado do arco-íris à força de ver as aves furta-cores. Agora nada mais tenho a fazer na terra. Assim como as outras aves digo que já não tenho que cumprir na terra, de dar testemunho de presença alada sobre a terra. Recuso-me a repetir convosco a canção primaveril: «Morremos pelos passari-i-nhos, façam bem aos passari-i-inhos!»

A variedade de cores da chuvada fala papagaio. Choca o vento que sai do ovo com grãos nos olhos. A dupla pálpebra do Sol levanta-se e baixa-se sobre a vida. As patas das aves sobre o vidro do céu são o que eu recentemente chamava as estrelas. A própria Terra de que tão mal se explica a marcha, enquanto se vive sob a abóbada, a terra espalmada pelos seus desertos está submetida às leis da migração.

O verão de pena não acabou. Abriram-se os alçapões e ali se enfiaram searas de penugem. O tempo tem a sua muda.

O galo do campanário adorna o fumo dos tiros enquanto a viúva de peito alaranjado volta ao cemitério cujas cruzes são o ponteado minúsculo dos diamantes do Senegal e que o homem continua a imaginar-se na terra como o melro no dorso do búfalo, sobre o mar como a gaivota na crista das vagas, o melro sólido e a gaivota líquida.

Horo, de dedo na boca, é a avalanche. Eu não tinha visto estes passarinheiros que procuram homens no céu e se apanham no ninho com as pedras que atiram para o ar.

As fénix vêm trazer-me o meu alimento de vermes brilhantes e as suas asas que incessantemente se reanimam no ouro da terra são o mar e o céu que só se vêem esbraseados nos dias de tempestade, e que escondam as suas cristas de raios nas penas no momento em que adormecem sobre o único pé do ar.

Os moinhos dos relâmpagos quebraram-lhes a concha e escapam em voo rápido, a aragem come as dunas, o horizonte tenta evitar as nuvens.

Reconhecereis que os vossos leitos-gaiolas, e as vossas grades torcidas, e os vossos sobrados picados, e os vossos e as vossas moscadas e os vossos espantalhos à última moda, e os vossos fios telegráficos, e as vossas viagens em compartimentos de pombo, e o soco de cordeiros das vossas estátuas de rapina, e as vossas corridas de sebes feitas ao crepúsculo de pintarroxos que levantam voo, e as horas, e os minutos, e os segundos nas vossas cabeças de pica-paus, e as vossas gloriosas conquistas, contudo, as vossas gloriosas conquistas de cucos! Todas armadilhas de graça nunca ali estiveram senão para me fazerem passar as barreiras do perigo, as barreiras que separam o medo da coragem. Não contem mais comigo para vos fazer esquecer que os vossos fantasmas têm a forma das aves-do-paraíso.

No começo era o canto. Toda a gente às janelas! De uma margem à outra já não se vê senão Leda. As minhas asas redemoinhantes são as portas pelas quais ela entra no pescoço do cisne, na grande praça deserta que é o coração da ave da noite.









andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972

2 comentários:

anderson disse...

muito interessante

observatory disse...

gostei do teu post ao poema do miguel :)



um gajo raro