24 outubro 2007

põe-se a questão de...


















O que é grave
é nós sabermos
que depois da ordem
deste mundo
uma outra existe.

Que outra?

Não o sabemos.

O número e a ordem das suposições possíveis
é neste campo
justamente
o infinito!

E o infinito o que é?

Não sabemos exactamente o que seja.

É uma palavra
que nós usamos
para designar
a abertura
da nossa consciência
perante a desmedida
possibilidade,
infatigável e desmedida.

E o que vem a ser exactamente a consciência?

Não sabemos exactamente o que seja.

É o nada.

Um nada
de que nos servimos
quando não sabemos qualquer coisa
para designar
qual a faceta que desconhecemos
e então
falamos em
consciência,
pelo prisma da consciência,
quando há cem mil outros prismas.

E então?

Parece que a consciência
estaria em nós
ligada
ao desejo sexual
e à fome;
mas poderia
perfeitamente
não ter qualquer ligação
com isso.

Diz-se,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver;

e imediatamente
a par do apetite de viver,
é o apetite de comida
o que imediatamente nos vem ao espírito;

como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e gente que tem fome.

Pois também isso
acontece
ter fome
sem apetite;

e então?

Então

o espaço do possível
surgiu-me um dia
como um grande peido
que eu tivesse dado;
mas nem o espaço,
nem o possível
sabia eu exactamente o que fossem,
nem nisso sentia necessidade de pensar;

eram palavras
inventadas para definirem coisas
que existiam
ou não existiam
frente à
premente urgência
de uma necessidade:
a de suprimir a ideia,
a ideia e o seu mito
e em seu lugar instituir
a manifestação tonante
desta explosiva necessidade:
dilatar o corpo da minha noite interna,

no nada interno
do meu eu

que é noite,
nada,
irreflexão,

mas que é explosiva afirmação
de que há
algo
a que dar lugar:

o meu corpo.

Mas então
reduzir o meu corpo
a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
em formação
dentro de mim?

Não sei
mas
sei que

o espaço,
o tempo,
a dimensão,
o devir,
o futuro
o porvir,
o ser,
o não ser,
o eu,
o não eu,

nada são para mim;

mas há uma coisa
que é qualquer coisa,
uma só coisa
susceptível de ser qualquer coisa,
uma coisa que eu sinto
por ela querer

SAIR:

a presença
da minha dor
de corpo,
a presença
agressiva
jamais cansativa
do meu
corpo;

e por mais que me apertem com perguntas
e que eu me esquive a todas,
chego a um ponto
em que me vejo constrangido
a dizer não,

NÃO

portanto
à negação;

e esse ponto
é quando me apertam,

quando me amolgam
e me dão tratos
até de mim sair
o alimento,
o meu alimento
e o seu leite,

e então que fica?

Fico eu sufocado;
E não sei que acção será essa
Mas apertando-me assim com perguntas
até à completa ausência,
ao nada
da questão,
apertaram-me
até sufocar
em mim
a ideia de corpo
e de ser um corpo,

e foi então que eu senti o obsceno

e que me peidei
de irrisão
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.

É que me apertavam
contra o meu corpo
e contra o corpo

e foi então
que eu fiz ir tudo pelos ares
porque no meu corpo
não se toca nunca.






antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
trad. luiza neto jorge
& etc
1975






2 comentários:

fernanda disse...

Extraordinário.

Letras de Babel disse...

um comentário por cada verso. nada menos.
se eu tanto conseguisse. se me libertasse do deslumbramento.



escolha fabulosa, gs