26 setembro 2007

andre breton e paul éluard /a concepção

Sigamos o Boulevard Bonne-Nouvelle
e apresentemo-lo.

A concepção
Uma vida compreendida entre duas outras vidas e, como habitualmente, passo de noite sem estrela, o ventre longo da mulher sobe, é uma pedra e a única visível, a única verdadeira, na cascata. Tudo o que tanta vez se anula, anula-se mais urna vez, tudo o que o longo ventre da mulher tanta vez realiza, para conservar o seu prazer mais puro que o frio de se sentir ausente de si mesma, se realiza mais uma vez. Até não se ouvir a respiração de animal bravio muito perto de si. Não é a dádiva que se gostaria de fazer de uma única moeda deste tesouro desenterrado que não é a vida que se gostaria de ter recebido pois assim como o longo ventre da mulher é o seu ventre, assim sonho, o único sonho é o de não ter nascido. A noite habitual é de tal modo bastante. A ignorância tão bem encontra nela o seu interesse. Não interrompe o amor que não se deita nem se ergue. Bem se sopraram os carvões, bem se fitaram na face até ao ponto de se perderem de vista. Ainda há pouco, ainda há pouco... Não éramos cada um de nós senão nós.
O homem não se reproduz numa grande gargalhada. O homem não se reproduz. Nunca ele povoou o seu leito senão com os ardentes olhos do seu amor. Julga o problema resolvido, e é tudo. O problema raramente se resolve. Os trapeiros têm filhos que são na verdade filhos de reis, filhos que, ao abrirem os olhos, confundem o diadema de suas mães com as folhagens maravilhosas das cenouras. Víboras nascem em qualquer lado. Os chefes de família em nada acreditam. Só se corta a cabeça ao desejo. Deixem passar, diz o condutor do velho autocarro, o condutor que se parecerá contigo, que se parecerá comigo sem piedade pelos cavalos com cabeça de mar de óleo. E, como é muito delicado, acrescenta, deixem passar, se fazem favor. O autocarro fantasma está já longe.
Seria necessário continuar o mesmo, sempre, com este desconcertante passo de ginasta, com este porte de cabeça ridículo. Mas eis que a estátua cai na poeira, que se recusa a manter o seu nome. Felizmente nada sabes e quase não olhas para o lado da imagem mura! que apresenta Mazeppa, só, perdido, na estepe. Foi a partir de ontem que me pareceu que ele se mexia. Esta sala é absurda, tenhamos cautela. Existem aqui paredes que não atravessarás, paredes que cobrirei de injúrias e de ameaças, paredes que para sempre são cor de sangue envelhecido, de sangue derramado.




andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



1 comentário:

fernanda f disse...

...Sangue que pinta nas paredes os olhos cegos de quem não olha, enquanto o homem ri. E as cenouras enrubescem de amor.