30 setembro 2022

joão narciso / estes ventos negros

 



2.
 
Querias que eles te visitassem.
Acreditas que te visitaram; claro que te visitaram.
Não consegues decidir em que ponto do tempo
deves alfinetar essa tarde de que te lembras.
Aconteceu o que aconteceu.
 
Na tua memória existe um rio de nuvens
que leva à tua margem as verdades murchas
e caídas na correnteza.
 
Fizeram as malas.
Embrulharam em papel-pardo as saudades,
o bolo finto, uma saca de laranjas
das árvores antigas do pomar,
o teu relógio de pulso desafinado,
a correia que agora já fecha,
fotografias dos meninos a sorrir
durante as semanas de ausência.
Queriam que visses quanto os miúdos cresceram.
Atrás deles, em procissão cortês, seguiu chuva miúda,
trovoada de Verão, um rombo nos teus hábitos.
 
Pediste que te visitassem mal houvesse autorização.
Os teus costados aguentariam uns quantos passeios pelos
corredores da casa, depois poderiam sentar-se no terraço
do primeiro piso, que é tão pequeno, bem o sabes,
mas tem bonitas cadeiras de metal, glicínias, roseiras,
cameleiras, dois sinos para os meninos se divertirem a
imaginar o repique e a urgência da cidade após o aviso
badalado.
 
Faz-se uma roda de gente,
dá-se fogo ao lume,
ateamos o presente,
atiçamos a vontade,
sugeriste.
 
Foram quando puderam.
 
Tinham medo de carregar nas mãos, nas solas, na voz
a coisa ruim que vos obrigou à separação necessária
ditada pela ausência:
 
telefonemas ao fim do dia quando a vida o permite,
chamadas por vídeo a cada duas ou três semanas, os teus
cotovelos apoiados sobre as coxas, regaço enxuto, olhos
postos nos objectos, nas máquinas, nos auxiliares e nos
enfermeiros que aparecem diante de ti e exibem rostos
sem boca, mãos de látex, pânico nos gestos,
 
olhos postos nessa realidade súbita de tudo o que é imóvel
e invisível, o espaço vazio que se senta no teu colo
todos os dias, a cada segundo.
 
Estão tão grandes, os meninos.
Os teus meninos.
 
Disseram que tinham medo de te expor,
de te ver arrastado nas enxurradas do contágio.
 
Tu, aos oitenta e oito anos de súbito plantado no topo
da batalha, sentado na tua cadeira de vime, num relance
atirado para a linha da frente:
 
um velho de cabelo raso, cal pura, com roupa puída,
dedos de cortiça, hálito de raposa, rumores nos lábios,
memória à flor da pele, coração de velho,
vácuo crescente nos ossos,
com pés descalços e calosos
a amassar a lama enegrecida
de um horizonte desfeito em fumo
e esboçado a silvos de bala.
 
Se pudesses olhar para ti agora,
se pudesses ver-te da perspectiva de quem não és,
reconhecerias, ali depositados, a tua experiência
e o teu saber; vê-los-ias cada vez mais mínimos,
cada vez mais ausentes, deixados ao abandono:
 
és o cavalo do esquecimento
a galope na fronteira da batalha,
 
sedimento frágil,
 
és o velho sentado a escrever um livro de instruções para
o pequenino que está para nascer, com os óculos de ver ao
perto a enfeitar-te a ponta fina do nariz e o gume estreito
da idade, ignorando a sarabanda, os gritos de ordem,
 
o avanço do inimigo invisível que vos cinzela a todos um
novo corpo a partir do avesso da pele, que vos inunda os
pulmões e os rins de líquido, de pus, que espalha pequenos
menires de sangue seco pelo sistema circulatório, pelas
vias do coração, que vos deixa rarefeitos por dentro,
 
tu, de casaco de malha pelos ombros
e sem máscara que te tapasse o sorriso,
 
tu, com o olhar desocupado, a boca desocupada,
o nariz desocupado,
 
tu, antigo e oblíquo, sentado na cadeira de vime,
mergulhado na noite à espera da alvorada,
à espera do baque, mas ignorando o baque,
a jogar à sorte numa batalha de xadrez
armado com pólvora seca
e não mais do que o bico da lapiseira
e a frente esburacada da memória,
 
tu, o velho
e eles, os jovens,
tu, o soldado raso,
e eles, o veneno.
 
Mas como?
 
 
 
joão narciso
estes ventos negros
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2021
 

 

 

 


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