20 julho 2018

ernesto sampaio / travessia




     Contemplar na sua própria trajectória o movimento do corpo que se destrói e do espírito que envelhece

       Conquistar à intranquilidade, o sentido do eterno, à amargura, o poder da revolta, à solidão, o direito ao diálogo

        Cada deus definitivamente sepultado é um homem livre sobre a terra

       Eu que circulo no labirinto e dirijo a fatalidade do caminho, espero o abrir da porta para além da qual alguma coisa se perca desta conjunção que se transporta comigo

     Através o tempo, através a carne, sem sequer supor do reverso do realizável a transfiguração que tudo redima

      Eu que, nesta sala hoje imensa, idêntica e sem exaltação possível, me detenho e esqueço o haver memória, furto-me à provável substituição do homem pela sua semelhança

       Cintila por vezes nestes quartos uma persistência do passado. A história possível da humanidade também tem a sua corte própria, uma virtualidade imperiosa, quase essencial, como se o irrealizado fosse a verdadeira alma do mundo

       Todo o possível se eterniza, vive sempre mais que o realizado, prologa-o, ilimita-o, dá dele a pálida imagem duma realidade profunda, desafiadora

       Decerto a mais pequena ambição humana é sempre maior que o mais alto dos homens

       Decerto a sua transformação em acto é inferior ao ser possível de que provém – e tudo o que poderia ter sido fica a pesar sobre o silêncio, temporariamente se organiza também em passado, presente e futuro, ganha pelo menos direito à memória

         E como o peso duma sentença, a memória indestrutível sustenta as nossas vidas e as nossas cidades

       A memória do que existe e do que faz e prolonga esse existir, e a memória do que poderia existir e que ocultamente cresce e se renova, longe da teia de actos em que nos debatemos

       Escorrendo como humidade, a persistência da recordação corrompe o nosso poder, prolonga nele a tensão constante do realizado e do irrealizado, do real e do possível, substitui-se à imaginação e à liberdade

     Sucessivamente se irão abrindo as portas, num percurso infindável, numa pálida sucessão de pequenos actos e adornos mentais, enquanto o labirinto se continua, se contorce sobre si mesmo, sem regresso possível ou detenção, sem fórmulas ou sagrações, nu e deserto, alheio e hostil, frio, ante o pavor que se inscreve no olhar mais subtil e delicado, na alma mais entregue à interrogação do seu fim

      Ó natureza incriada e geradora de afrontas, de homens, mãe absoluta de todos os nossos gestos e fantasmas, de que parcela mais inútil do teu ventre se gerou esta minha carne, estes meus remorsos e ousadias

      Que inquietação me criou, se tudo era sossego e silêncio, medida e equilíbrio, repouso e eternidade                                      

        Em cada gesto se insere o tempo, quando tudo é imóvel e o próprio movimento uma tendência para o repouso
               
      Da face plácida do mistério me arrancaram e devolveram à desordem, quando em ti tudo reclama a perenidade desse mistério – de ti, incriação, assim partimos, contendo em nós, ocultamente, o apelo que nos marcaste e que de novo nos conduzirá ao silêncio e à totalidade

    Preencho o caminhar destes passos com o som crescente desse apelo, dessa voz irresistível, desse chamamento atordoador, desse desejo de regresso, quando não se regressa nunca e apenas se acelera a vertigem em que nos possui a certeza dessa aglutinação final, dessa ausência para sempre, como quem entra num nevoeiro sem fim, e sucessivamente perde o olhar, o sentir, a consciência

      Hoje, sobre a terra rolando pelo tempo, dentro deste labirinto cada vez mais estreito, onde as paredes mais se comprimem e o ar se rarefaz, coalhado de ameaças, de sinais indecifráveis, reflexos de povos e de memórias, ecos de acções e de sonhos, ruir de paredes que outras paredes cercam, gemidos de naufrágios e tempestades, girar de planetas

     Uma voz abafada, longínqua, do peito do homem se levanta, segura, lenta, uma voz que não se esquece nunca, vibrátil, ardente, correndo pelo íntimo da terra como um fogo secular, um murmúrio ameaçador, humano, implacável




ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986




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