06 dezembro 2016

carlos de oliveira / definição




O sal é o mar servido à mesa nas suas praias
domésticas de linho.



carlos de oliveira
terra da harmonia
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998


05 dezembro 2016

jorge luís borges / as causas




Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



04 dezembro 2016

josé de almada negreiros / aconteceu-me






Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado.
e eu tenho visto olhos!
mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.


josé de almada negreiros
almada
o escritor
o ilustrador
secretaria  de estado da cultura
instituto da biblioteca nacional e do livro
1993





03 dezembro 2016

herberto helder / fonte



II

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
Aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva, em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



02 dezembro 2016

ruy belo / em louvor do vento




Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos olhos
                                                                                                                     de uma mulher
que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser possivelmente
                                                                                                                                 essa mão
inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre esperada
sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente
distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que
roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser
que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas compridas e                                                                                                                                                                        
                                                                                                                          transparentes
e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde
feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar
até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo da sua altura e da sua idade
na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples
                                                                                            ampulheta ou clepsidra
O vento a essas horas incertas perdidas da noite quando a obscuridade
desde há tanto que mais parece desde sempre cobriu com o seu manto
todas as coisas designadamente os compridos corpos humanos
e abafou os miúdos inumeráveis ruídos que costumam acompanhar a luminosidade
                                                                                                                                  cega do dia
entoa então por vezes nas árvores e nas casas e em coisas como os arames e as mais
                                                                                                        variadas saliências da terra
o seu canto levíssimo levitante vagamente triste cortante mais cortante mesmo
que a faca cujo gume acaba de sair das múltiplas mãos dos móveis amoladores
um canto que faz lembrar o uivo de certos animais feridos talvez na raiz da sua
                                                                                                                      sensibilidade
ou a súbita irrupção dos primeiros violinos numa sala abafada pelo veludo das
                                               cadeiras ou as peles das senhoras da alta sociedade
um canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite o ouviu
dificilmente dicionarizável porque a essas horas os académicos dormem
sonhando talvez com o discurso de ingresso de um novo membro na academia
e o vento é de uma sociabilidade altamente duvidosa e canta canta nas dobras da
                                                                                                                                          noite
Eu estou deitado e então sinto a ponta dos pés nos lençóis recém-mudados
sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis
e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de haendel
e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral
de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio
O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim
os cuidados deitados talvez comigo desaparecem inspiro profundamente
e sinto-me tão bem que até me parece penoso dizer que me sinto tão bem
não vá eu deixar porventura de me sentir assim tão bem não vá o vento calar-se
Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a voz
                                                                                                                                do vento
uma cavidade qualquer assim como as salas dos aeroportos destinadas às pessoas
                                                                                                                  muito importantes
mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante para mim
As ramadas das árvores agora sim agora devem viver
agora devem manifestar vivamente que vivem
haverá talhadas luminosas e brancas na crista das inúmeras ondas do mar da baía
e eu oiço completamente o vento e ouvir o vento é suficiente para me sentir vivo
para sentir as amplas asas da paz abertas no peito no leve leque das suas penas
Desvaneceram-se decididamente na vasta sede da noite
as rápidas mulheres munidas de imensos pés que sem reservas amei
jamais imprimi palavra alguma nas páginas brancas do papel tão brancas e
                                                                                                sucessivas como dias
não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo até agora mesmo de nascer
Neste momento sou apenas sou pelo menos desde os pés da cama até à
                                                                           cabeceira a voz vasta do vento
e a minha cama range como quando pomos os pés nesses velhos sobrados onde
                                                                                                 se deixa grelando a batata
cresce o ritmo da minha respiração o pulso bate-me cada vez mais apressadamente
volto-me vagamente vagarosamente mais ou menos lá para donde pressinto que
                                                                                                                           o vento vem
é possível que morra de um momento para o outro quando menos espere
e a cabeça me fique a baloiçar ao vento de um lado para o outro primeiro
de parede para parede do quarto depois lá fora entre leste e oeste
Há um vento impetuosamente solto na noite da minha vida um vento
mais louco do que mulheres esbeltas e lentas nos seus longos cabelos
e sinto que as pontas dos pés me chegam mais longe cada vez mais longe
e não leio na agenda nenhumas horas marcadas nem sei de locais de encontro
não necessito tomar o metro pedir um gin tónico que vá bebendo gole
a gole no bar deserto pensando talvez que ali esteve um dia hemingway esperando
                                                                                                                           talvez como eu
saboreando o leve sabor amargo do gin desfazendo o limão vendo as cortinas
                                                                                                           esvoaçar ao vento
O vento vibra na sua voz de vento alarga aos quatro cantos
aos inumeráveis recantos da noite as espirais translúcidas do seu vulto
infunde uma vida irritante saltitante e irrequieta em coisas
como latas amolgadas e enferrujadas enferrujadas precisamente nas partes amolgadas
como madeiras apodrecidas pelo salitre e pela chuva como portinholas
                                                                                                   desengonçadas
o vento sopra na areia enverga as vestes cheias de folhos e dobras
da areia possivelmente para ter um mínimo de corpo e tornar-se visível
e bailar rodopiando no largo à volta do vulto do cruzeiro
e caminhar caminhar cada vez mais caminhar cada vez a passos mais largos
e proceder à sistemática ocupação dos mais recônditos recantos da terra
Vejo vislumbro através da janela levemente entreaberta
que o vento circula a muitos quilómetros por hora na estreita estrada
que o vento enche preenche o espaço arenoso indeciso e nublado entre estas poucas
                                                                                                                         casas sonâmbulas
que passa a mão inquieta de muitos dedos abertos dispersos e diluídos
primeiro aqui pela aldeia depois possivelmente por toda a terra
e não tardará talvez a elevar vales a aplanar muitos dos montes
num trabalho perseverante e esgotante que são joão baptista e cristo
aliás ocupados com outras coisas se devem ter visto impotentes para levar a cabo
E eu aqui sem nenhuma memória abandonado até por estas paredes ainda há
                                                                                                        pouco à minha volta
apenas dispondo deste resto de corpo onde o vento pode à vontade
vibrar quando quiser até quando quiser e assim vibrando
demonstrar que existe que vive e dizer eu sou o vento e nasci em tantos
do tal em tal sítio e a sua afirmação valer como um bilhete de identidade
Creio que morreria se não pressentisse não sei bem como
mas através de um latejo levemente diferente do coração
que o vento já tão irrequieto esta noite ficaria talvez triste
por ver desaparecer não um dos poucos amigos e admiradores veneradores
atentos e obrigados que talvez sinceramente tenha
não um espectador interessado do longo e variado festival que nestes momentos
                                                                                                                                apresenta
mas uma coisa mais um obstáculo mais a demolir e a vencer
Tenho oito cadeiras trabalhosamente entrelaçadas no distante vime da juventude
quando pelas tardes de calma e calor me banhava na vala junto ao moinho
e os vimes os mais ginasticados emissários da vegetação das margens
cortavam em tiras a sombra que poisava ao de leve na água
tenho essas oito cadeiras disponho-as em fila com a seca solenidade de um
                                                                                                                    cerimonial
e rígido e digno da minha estatura liberta enfim das volumosas volutas dos
                                                                                                                 barbitúricos
aguardo cheio de calma que o vento se sente multiplicadamente nas oito cadeiras
                                                                                                                                 que tenho
Talvez o vento levante a voz aumente ainda mais de volume
convoque ventos de outros espaços e sopre na força irresistível e tempestade
e venha violentamente até mim e varra da minha casa
e varra da minha vida tudo absolutamente tudo o que não seja o vento
e sejam talvez coisas planas e chatas e domésticas e imensamente
miúdas e não disponham desta voz côncava do vento
Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul
há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem
ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite
O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço
anexa pela violência territórios que ainda há pouco lhe opunham certa resistência
ensaia agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite
canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páginas dos
                                                                                                                        dicionários
afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo
Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últimos véus do sono
muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés
o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais
disputará o lugar à voz do vento nos meus ouvidos
Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados
as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca
mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e
                                                                                                        perdida do meu corpo
continue vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala
exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante
até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe
talvez de um secundaríssimo instrumento na complexa e simples orquestra do                                                                                                                                  vento



ruy belo
toda a terra
todos os poemas III
assírio & alvim
2004








01 dezembro 2016

ana hatherly / variação II



quando leonor pela manhã estava nua
acorda e sente essa verdura irmã da
formosura das fontes e da verdura
estende o pé e pisa o chão descalça
e treme de verdura pela formosura da
manhã primeiro jacto da fonte da verdura
seu pé descalço treme de frio como tremem
as faces da verdura abrindo suas bocas
à aragem fria da manhã segura como a
fonte segura da verdura da aurora e nua
como leonor fremente pela verdura e tão
formosa como a fonte que irrompe de
súbito como o dia estende o pé descalço
para fora do leito da fundura da noite
em que dormem as fontes a verdura a
formosura e leonor insegura ergue-se a
caminho pela verdura e na verdura colhe
formosura vai para a fonte nua


ana hatherly
anagramático
1970



30 novembro 2016

luiza neto jorge / recanto 18



Desses «em guerra» vos falo falo dos que me seguem
não os chamámos seguiram-nos
todos descremos e rimos por dinheiro não trocámos
projectados para a morte não traímos

Eu e ele somos a espaços
improváveis veículos (eu e vós)
mestres voadores numa convulsão de cigarros mestres
reptantes redemoinho meu ressaca viva oculto vinho
oculto amor

o nosso vedado o mundo tão exíguo e o dos outros
(luzes água planetas mecanismos ambíguos) mais
exíguo

Amamos o mundo (quem?) o tempo (qual?) a luz (quando?)
a treva (onde?) tudo (?) todos (?!)
trepidantes trémulos
com a ajuda mental de partículas
de merda

ou simples estados, frenesis, convulsivos, objectos,
alibis, a pique, patológicos,
risos, redundâncias, aços, lascados, alarmados,

conhecemos – além de nós, reais –
os reis, os resíduos, o dente liliputiano
no sorriso o arcanjo.



luiza  neto jorge
dezanove recantos
1970