30 maio 2016

faraj birqdar / e quando o desespero



E quando o desespero
vier bater à tua porta
levanta-te, escreve uma mensagem simples
na parede
ESTE HOMEM ESTÁ DESESPERADO

A seguir diz isto ao teu senhor, o sultão:
A tua cela não é mais estreita que a sua sepultura,
Nem mais duradoura que a sua vida.
Há-de chegar o dia em que a terra
também há-de acolher o seu cadáver,
primeiro os pés
com o esquecimento a acompanhar o funeral.


faraj birqdar
a palavra interdita
tradução de Maria de Lourdes Guimarães
campo das letras
2001



29 maio 2016

egito gonçalves / identificação



O areal é o desenho branco do teu corpo
E o rio corre como se tu não existisses…
Sonolentas pálpebras cerrando-se
As nuvens cortam as manchas do luar.

Aguardando o quebrar da tua voz
Que a sulcará de ternura e de ruído
A paz ronda a silenciosa margem
Onde se estende o teu vulto imaginado


egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971


28 maio 2016

daniel faria / sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos



Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel  leão
2002



27 maio 2016

heiner müller / poema antigo



De noite atravessando o lago a nado o momento
Que te põe em causa Já não há outro
Finalmente a verdade Que tu mais não és que uma citação
De um livro que não escreveste
Podes escrever uma vida para negar isto na tua
Fita de máquina descorada O texto lê-se à transparência



heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997




26 maio 2016

miriam van hee / primavera na shildersstraat



Via-te lá do outro lado
como se de um abrigo subterrâneo
saísses: cauteloso e espantado
com a luz que brilhava sobre os telhados
ainda trazias o casaco comprido de inverno
podia ter feito um sinal
podia-te ter feito perguntas
havia entre nós a rua como água
atrás de mim estavam mães sentadas no parque
em redor do museu, os filhos
levavam bofetadas até chorarem
a mim salvou-me o tempo,
a distância, este poema



miriam van hee
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
tradução de fernando venâncio
assírio & alvim
1997



25 maio 2016

harold pinter / tu à noite



Tu à noite havias de escutar
A trovoada e o ar ambulante.
Tu nessa margem hás-de virar
Para onde estão as intempéries dominantes.

Toda essa honrada esperança
Ruirá na ardósia,
E destroçará o inverno
Que vocifera a teus pés.

Se bem que ardam os altares apaixonantes,
E que o sol deliberado
Faça ladrar a águia,
Tu avançarás na corda bamba.

c. 1952


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006


24 maio 2016

p. s. rege / sonho



Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam –
Flores que não podiam sequer dizer quem eram…
E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda uma trémula ponte
Entre nós.



p. s. rege
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. cecíla rego pinheiro
assírio & alvim
2001



23 maio 2016

ernesto sampaio / estrada



Noite sem rasto guia-me até ao meu destino
escondido na solidão das ruas
inconcreto na vastidão das horas
onde tu existes misteriosa e nocturna
no teu perfil de bruxa e da rainha
apátrida e nostálgica
deslizando no vidro da madrugada
azulando de raios gelados o dia que nasce
viva e oculta
cada vez mais viva e oculta
cada vez mais única de amor humano
com a tristeza das luzes marítimas
com a gravidade de quem parte
suavemente para sempre


ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986



22 maio 2016

vladimir maiakóvski / e assim me aconteceu



Os navios para o porto navegam;
os trens trafegam para as estações.
Assim eu, tão mais depressa
 – afinal, eu amos! –
para ti, minha desembocadura, sou entregue.
O cavaleiro avaro de Pushkin
adorando seu ouro no porão
cava e enterra.
Assim eu
para ti, minha amada, regresso.
Meu coração aí está
e minha adoração é essa.
Ao regressar à casa estamos contentes –  
nos lavamos, fazemos a barba.
Assim eu
Para ti regresso –
acaso para ti indo
não estou voltando para casa?
São, as criaturas terrestres,
recolhidas para o seio da terra;
progredimos para lá
onde tudo começa.
Assim eu
por ti
sou tragado continuamente –
mal nos separamos
é em ti que se acaba.



vladimir maiakóvski
uma nuvem de calças e liubliú
tradução de andré nogueira
editora medita
2013



21 maio 2016

marin sorescu / hino



Em vez de raízes as árvores
Têm santos,
Que se levantaram da mesa
E ajoelharam debaixo da terra
Para a oração.

Apenas as auréolas
Ficaram de fora:
Estas árvores,
Estas flores.

Também nós, chegada a nossa vez, seremos
Santos,
Orando para que a terra
Continue redonda e abençoada
Para todo o sempre.



marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




20 maio 2016

josé tolentino mendonça / cinza do lume



um rosto a quem dói ser  sua própria cicatriz
cinza do lume perfeição ferida
um pássaro sublime apressado para a morte
era assim que definia o verso

ruína ou magnífica alusão que tocou
com essa espécie de coração negro
que serve
a consumação de uma arte


josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997



19 maio 2016

armando silva carvalho / il prete rosso



É como se uma flauta dissesse
este padre está podre.
Podre de silêncio até aos ossos,
até quando abandonava o altar
para fixar no papel um tema estremunhado.
E do novelo ardente dos cabelos
puxava a linha putrefacta
para a noite subterrânea dos sentidos.
Trezentos anos depois, ouvindo esta música
fétida da terra, eu sinto vir da noite apodrecida,
envenenar a luz crua do dia, todo o rumor
dos séculos, Il Prete Rosso.


armando silva carvalho
alexandre bissexto 1983
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



18 maio 2016

blaise cendrars / o fim do mundo



20

Meio-dia. Praça de Notre-Dame. Os autocarros rodam à volta do abrigo central. Um gato-pingado sai do hospital, seguido por cegos da guerra. Uma secção da Polícia Municipal está alinhada à frente da caserna, do outro lado da rua. Homens apressados riscam a praça em todos os sentidos. Na margem esquerda passa um bando ruidoso de estudantes.

21

Ao primeiro toque de clarim, o tamanho do disco solar aumenta um número e a sua luz enfraquece. Todos os astros surgem subitamente no céu. É bem visível que a luz está a rodar.

22

O Anjo N.-D. incha as bochechas ao máximo.

23

Vemos transeuntes taparem os ouvidos e a voltarem a cara, sem cerimónia.

24

Todas as cidades do mundo se levantam no horizonte, escorregam ao longo das vias férreas e vêm juntar-se, aglomerar-se à frente da Notre-Dame.

25

O sol imobiliza-se. É meio-dia e um minuto.

26

Tudo o que os homens construíram desaba imediatamente sobre os vivos e soterra-os. Só o que ainda tem um resto de vida mecânica resiste mais dois segundos. Vemos comboios andar sem comando, máquinas rodar em vazio, aviões cair como folhas mortas.

27

Uma imensa coluna de poeira sobe a direito no céu e depois racha, divide-se, deita-se, gira em turbilhão, esfarrapa-se, espalha-se em todos os sentidos; sopram ventos de tempestade; o mar abre-se e fecha-se; as montanhas do México abanam em plena luz.



blaise cendrars
o fim do mundo filmado pelo anjo n.-d.
tradução de aníbal fernandes
assírio & alvim
2004