26 maio 2016

miriam van hee / primavera na shildersstraat



Via-te lá do outro lado
como se de um abrigo subterrâneo
saísses: cauteloso e espantado
com a luz que brilhava sobre os telhados
ainda trazias o casaco comprido de inverno
podia ter feito um sinal
podia-te ter feito perguntas
havia entre nós a rua como água
atrás de mim estavam mães sentadas no parque
em redor do museu, os filhos
levavam bofetadas até chorarem
a mim salvou-me o tempo,
a distância, este poema



miriam van hee
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
tradução de fernando venâncio
assírio & alvim
1997



25 maio 2016

harold pinter / tu à noite



Tu à noite havias de escutar
A trovoada e o ar ambulante.
Tu nessa margem hás-de virar
Para onde estão as intempéries dominantes.

Toda essa honrada esperança
Ruirá na ardósia,
E destroçará o inverno
Que vocifera a teus pés.

Se bem que ardam os altares apaixonantes,
E que o sol deliberado
Faça ladrar a águia,
Tu avançarás na corda bamba.

c. 1952


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006


24 maio 2016

p. s. rege / sonho



Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam –
Flores que não podiam sequer dizer quem eram…
E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda uma trémula ponte
Entre nós.



p. s. rege
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. cecíla rego pinheiro
assírio & alvim
2001



23 maio 2016

ernesto sampaio / estrada



Noite sem rasto guia-me até ao meu destino
escondido na solidão das ruas
inconcreto na vastidão das horas
onde tu existes misteriosa e nocturna
no teu perfil de bruxa e da rainha
apátrida e nostálgica
deslizando no vidro da madrugada
azulando de raios gelados o dia que nasce
viva e oculta
cada vez mais viva e oculta
cada vez mais única de amor humano
com a tristeza das luzes marítimas
com a gravidade de quem parte
suavemente para sempre


ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986



22 maio 2016

vladimir maiakóvski / e assim me aconteceu



Os navios para o porto navegam;
os trens trafegam para as estações.
Assim eu, tão mais depressa
 – afinal, eu amos! –
para ti, minha desembocadura, sou entregue.
O cavaleiro avaro de Pushkin
adorando seu ouro no porão
cava e enterra.
Assim eu
para ti, minha amada, regresso.
Meu coração aí está
e minha adoração é essa.
Ao regressar à casa estamos contentes –  
nos lavamos, fazemos a barba.
Assim eu
Para ti regresso –
acaso para ti indo
não estou voltando para casa?
São, as criaturas terrestres,
recolhidas para o seio da terra;
progredimos para lá
onde tudo começa.
Assim eu
por ti
sou tragado continuamente –
mal nos separamos
é em ti que se acaba.



vladimir maiakóvski
uma nuvem de calças e liubliú
tradução de andré nogueira
editora medita
2013



21 maio 2016

marin sorescu / hino



Em vez de raízes as árvores
Têm santos,
Que se levantaram da mesa
E ajoelharam debaixo da terra
Para a oração.

Apenas as auréolas
Ficaram de fora:
Estas árvores,
Estas flores.

Também nós, chegada a nossa vez, seremos
Santos,
Orando para que a terra
Continue redonda e abençoada
Para todo o sempre.



marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




20 maio 2016

josé tolentino mendonça / cinza do lume



um rosto a quem dói ser  sua própria cicatriz
cinza do lume perfeição ferida
um pássaro sublime apressado para a morte
era assim que definia o verso

ruína ou magnífica alusão que tocou
com essa espécie de coração negro
que serve
a consumação de uma arte


josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997



19 maio 2016

armando silva carvalho / il prete rosso



É como se uma flauta dissesse
este padre está podre.
Podre de silêncio até aos ossos,
até quando abandonava o altar
para fixar no papel um tema estremunhado.
E do novelo ardente dos cabelos
puxava a linha putrefacta
para a noite subterrânea dos sentidos.
Trezentos anos depois, ouvindo esta música
fétida da terra, eu sinto vir da noite apodrecida,
envenenar a luz crua do dia, todo o rumor
dos séculos, Il Prete Rosso.


armando silva carvalho
alexandre bissexto 1983
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



18 maio 2016

blaise cendrars / o fim do mundo



20

Meio-dia. Praça de Notre-Dame. Os autocarros rodam à volta do abrigo central. Um gato-pingado sai do hospital, seguido por cegos da guerra. Uma secção da Polícia Municipal está alinhada à frente da caserna, do outro lado da rua. Homens apressados riscam a praça em todos os sentidos. Na margem esquerda passa um bando ruidoso de estudantes.

21

Ao primeiro toque de clarim, o tamanho do disco solar aumenta um número e a sua luz enfraquece. Todos os astros surgem subitamente no céu. É bem visível que a luz está a rodar.

22

O Anjo N.-D. incha as bochechas ao máximo.

23

Vemos transeuntes taparem os ouvidos e a voltarem a cara, sem cerimónia.

24

Todas as cidades do mundo se levantam no horizonte, escorregam ao longo das vias férreas e vêm juntar-se, aglomerar-se à frente da Notre-Dame.

25

O sol imobiliza-se. É meio-dia e um minuto.

26

Tudo o que os homens construíram desaba imediatamente sobre os vivos e soterra-os. Só o que ainda tem um resto de vida mecânica resiste mais dois segundos. Vemos comboios andar sem comando, máquinas rodar em vazio, aviões cair como folhas mortas.

27

Uma imensa coluna de poeira sobe a direito no céu e depois racha, divide-se, deita-se, gira em turbilhão, esfarrapa-se, espalha-se em todos os sentidos; sopram ventos de tempestade; o mar abre-se e fecha-se; as montanhas do México abanam em plena luz.



blaise cendrars
o fim do mundo filmado pelo anjo n.-d.
tradução de aníbal fernandes
assírio & alvim
2004




17 maio 2016

yannis ritsos / explicação necessária



Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
                                         Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.


yannis ritsos
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. eugénio de andrade
assírio & alvim
2001




16 maio 2016

antónio quadros ferro / ou a empatia






Eu morri, provavelmente, dentro da escola quando em adulto
percebi que nenhum dos meus professores lia poesia.
Exagero?


antónio quadros ferro
ou a empatia
artes e letras atelier
2015





15 maio 2016

cesário verde / lúbrica



Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!


cesário verde
o livro de cesário verde
1901



14 maio 2016

joão zorro / cantiga de amigo



Pela margem do rio tranquilo,
brinquei, oh mãe, com o meu amigo.
Amores eu tenho, antes não tivesse,
o que fiz por ele, antes não fizesse!

Pela margem do rio ondulante,
brinquei, oh mãe, com o meu amante.
Amores eu tenho, antes não tivesse,
o que fiz por ele, antes não fizesse!



joão zorro
antologia de poesia portuguesa
erótica e satírica
selecção de natália correia
antígona / frenesi
2000