30 abril 2014

manuel de freitas / terceiro direito




O inferno, aqui. Deve ser normal.
Um choro de criança, no andar
de cima, sobrepõe-se à música
que não ouço e que é talvez de Brel
(nenhum quarteto de Mozart serviria agora).

Há dias assim. Os guindastes
da insónia não seguram a voz, desastre
anunciado pela teimosia dos pássaros
suburbanos. Coisas de muito esquecer,
se eu pudesse. Mas o corpo hesita,

volta a ser o envelope vazio
de um destino por assinar ─ e que
nada tem, neste momento, de «literário».
Sinto a luz na garganta, sufoco

discretamente, alheio ao excesso
de imagens que me traz o dia.
A alegria, se quiserem, fica para mais
tarde. Aqui, de novo, morre-se muito mal.



manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




29 abril 2014

herberto helder / ciclo


I
Escuto a fonte, meu misterioso desígnio
de cantar o amor.
Da tremenda alegria da carne
deve vir o espírito do canto, da vossa
deslumbrante alegria, ó intensas
criaturas solares.

Tudo o que é como sinal fecundo
da terra, tudo o que se toca
entre comoção e pensamento,
deve participar do vosso cântico, ó
corpos apoteóticos, corpos
reconstruídos sobre o frio ascético dos cadáveres.

Vosso é o vinho libertador, a erva
virgem, ó pequenas cabras rituais, a erva
junto à água, junto ao silêncio,
junto à aragem - vosso é o pólen inconspurcado,
o fruto, o dia, a delirante
lua vermelha.

Vindes na simples harmonia da fome
e da mesa,
com gestos sexuais de uma graça infantil,
o puro impudor,
a generosidade ingénua
do pecado.

Eu canto vossas coxas verdes, o antigo
turbilhonar do instinto
que transportais castamente como um depósito
no sacrário do sexo,
canto vosso ventre diurno,
a grande inocência de uma entrega
milagrosa.

Humildemente teço minhas palavras gratas
sobre a bela ferocidade
da carne, ergo minha taça,
ouço o oculto rumorejar da fonte.
Humildemente dissipo a solidão, aceito vosso apelo de esperma,
mereço a poesia.

─  Humildemente repudio a morte.


herberto helder
ciclo, poema I
poesia toda
assírio & alvim
1996



28 abril 2014

antónio gancho / artéria, tu tens razão



A única coisa que eu aprendi meu Deus
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi

Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.

Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.

Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso

Eu fum, eu...
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urania
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.

Quem olha descontenta.



antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




27 abril 2014

vasco graça moura (1942-2014)



blues da morte de amor


já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.



vasco graça moura
antologia dos sessenta anos
asa
2002




26 abril 2014

fiama hasse pais brandão / o nome lírico



Esta manhã
hoje
é um nome

Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca

Uma palavra
palavra só
a ergue

Com um nome
amanhece
clareia

Não do sol
mas de quem
a nomeia


fiama hasse pais brandão
líricas portuguesas
edições 70
1983 





25 abril 2014

24 abril 2014

paul éluard / liberdade




Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

Liberdade.



paul éluard
trad jorge de sena





23 abril 2014

thom gunn / o mensageiro



Transforma-se este homem num anjo quando fixa
Uma flor vermelha cujo nome ele desconhece.
        A face de veludo, os cabelos de pontas negras?

Os seus olhos dilataram-se como os de um gato à noite.
Os seus lábios entreabrem-se mas não fala
        Daquilo que vê e que assim o completa.

O seu corpo prepara-se para imitar a flor,
Ajoelhando-se e enterrando os dedos dos pés no solo,
        A origem crua, granulosa e acre.

A sua quietude responde como um espelho,
O da flor; ela é a serenidade da chama em botão
        Que abriga dentro de si a plenitude da erva.

Mais tarde as notícias, para se ramificarem de sentido em sentido,
Trazendo as suas versões da flor numa pequena
        Aparência exterior até à sua compreensão.

Entretanto, silencioso e expandindo-se como uma chama,
Ele inclina-se contemplando apenas o exterior:
        Caule firme e rosto sem nome.





thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



22 abril 2014

edgar lee masters / sónia, a russa



Eu, nascida em Weimar
de mãe francesa
e pai alemão, um homem muito culto, professor,
fiquei órfã aos catorze anos,
e tornei-me na dançarina que em todas as avenidas de Paris
era conhecida como Sónia, a Russa.
Fui amante, no início, de vários duques e condes
e, mais tarde, de artistas pobres e poetas.
Aos quarenta, passée, rumei a Nova Iorque
e conheci no navio o velho Patrick Hummer,
forte e de rosto corado, apesar dos seus sessenta anos,
que regressava após ter vendido um carregamento
de gado em Hamburgo, na Alemanha.
Vim com ele para Spoon River e aqui vivemos
durante vinte anos ─  todos pensavam que éramos casados!
Este carvalho junto à minha campa é o retiro favorito
dos gaios azuis que palram e palram, todo o dia.
E por que não, se até as minhas cinzas se riem
quando pensam nessa coisa tão cómica a que chamam vida?



edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



21 abril 2014

luís filipe parrado / partes de um todo



Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois de jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.



luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



19 abril 2014

álvaro de campos / cruz na porta



Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,  
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige  
O coração que, de repente, 
Entre o que vive, se esquece. 
Não sei qual é o sentimento 
Que me desvia do caminho, 
Que me dá de repente 
Um nojo daquilo que seguia, 
Uma vontade de nunca chegar a casa, 
Um desejo de indefinido. 
Um desejo lúcido de indefinido. 
   
Quatro vezes mudou a 'stação falsa 
No falso ano, no imutável curso 
Do tempo consequente; 
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde, 
E não sabe ninguém qual é o primeiro, 
Nem o último, e acabam.

  

álvaro de campos




18 abril 2014

hans-ulrich treichel / minotauro I



Quando eu ara novo errava
errava pelos longos corredores sem sombra
do meu palácio e uivava como o vento
nas florestas. Agora estou aqui, neste
chão arenoso, à espera: há-de vir alguém,
de machado à cintura, para me rachar a cabeça.
Mas eu só ouço a minha respiração arrastada e
às vezes um restolhar entre as pedras.
Cansado da espera e cego, como hei-de
encontrá-lo, a esse único hóspede?



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994