27 julho 2013

gil t. sousa / vê, é o mundo!



19

gostava da janela pela madrugada
quando me puxavas para ti
e me dizias, apontando as luzes e as sombras
sobre os telhados da cidade:


vê, é o mundo!


gil t. sousa
água forte
2005


26 julho 2013

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)

  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  (...)
  que falaram continuamente durante setenta horas do parque para a vereda para o bar
  para Bellevue para o museu para a Ponte de Brooklyn,
  um batalhão perdido de conversadores platónicos saltando para baixo das inclinações
  das saídas de incêndio dos parapeitos das janelas do Empire State fora da lua,
  balbuciando gritando vomitando sussurrando factos e memórias e anedotas e golpes
  no globo ocular e choques de hospitais e cadeias e guerras,
  completos intelectos regurgitados na total revogação de sete dias e sete noites
  com olhos brilhantes, carne para a Sinagoga lançada no pavimento,

  que desapareceram no Zen de nenhures em New Jersey deixando um rasto de
  ambíguos postais ilustrados da Câmara Municipal de Atlantic City,
  sofrendo de suores Orientais e triturações ósseas Tangerianas e enxaquecas da
  China devido à privação de droga no desolado quarto mobilado de Newark,

  que vaguearam em círculos à meia-noite no pátio do caminho-de-ferro
  interrogando-se onde ir, e partiram, sem deixar corações partidos,

  que acenderam cigarros em vagões-jota vagões-jota vagões-jota fazendo algazarra
  através da neve em direcção a quintas solitárias na noite avó,

  que estudaram Plotinus Poe S. João da Cruz telepatia e bop cabala porque o cosmos
  vibrava instintivamente aos seus pés no Kansas,

  que o arrastaram solitário através das ruas de Idaho buscando anjos índios visionários

  que eram anjos índios visionários,

  que pensavam ser apenas loucos quando Baltimore
  cintilava em êxtase sobrenatural,

  que saltaram em limosines com o Chinês de Oklahoma no impulso da
  luz das ruas de chuva da meia-noite invernal de cidades pequenas,

  que deram investidas esfomeados e sós por Huston em busca de jazz ou sexo ou
  "sopa", e seguiram o Espanhol brilhante para conversar acerca da
  América e Eternidade, uma tarefa desesperada, e portanto embarcaram para África,

  que desapareceram adentro dos vulcões do México deixando para trás nada a não ser
  a sombra de estercos e a lava e as cinzas de poesia disseminada
  na lareira Chicago,

  que reapareceram na Costa Oeste investigando o F.B.I. em barbas e
  calções com grandes olhos pacifistas sexys na sua pele bronzeada divulgando
  folhetos incompreensíveis,

  que queimaram buracos com brasas de cigarro nos seus braços protestando contra a
  neblina narcótica de tabaco do Capitalismo,

  que distribuíram panfletos Supercomunistas em Union Square choramingando e
  despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os derrubavam com lamentos, e com     lamentos derrubavam o Muro,
  e assim o ferry de Staten Island também se lamentava,

  que tiveram um colapso nervoso em pranto nos ginásios brancos nus e tremendo
  perante a maquinaria de outros esqueletos,
  (...)




  allen ginsberg



25 julho 2013

samuel beckett / mais depressa que onde



mais depressa que onde
nas espiras dos olhos
corre até
gelado no carril
da mandíbula
roer o ranger
dos dentes com o
claque-claque da cegonha

que atravessa
o sentido ido
e o olho
esbugalhado
do branco
por desnudar
tremor pavor
nem a nada

súbito dentro
macio de cinza
pânico
cintila dilacera
e de súbito
re macio
tremor passado
nunca sido

do raio
num latíbulo
há tanto escuro
tremor pavor
até que a brecha
cerrada
re escura
re queda

assi aqui
muito queda
muito nada
lacerada assi
assi sacudida
passada
cabeça amarra
in ex quasi morta

1974


samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



24 julho 2013

eugénio de andrade / a boca



A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
  
  

eugénio de andrade




23 julho 2013

herberto helder / rosa esquerda



rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma,
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único


herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013



22 julho 2013

joyce kilmer / árvores



Parece-me que nunca ninguém há-de
Ver poema tão belo como a árvore.

Árvore que sua boca não desferra.
Do seio doce e liberal da terra.

Árvore, sempre de Deus a ver imagem
E erguendo em reza os braços de folhagem.

Árvore que pode usar, como capelo,
Ninhos de papo-ruivo no cabelo;

Em cujo peito a neve esteve assente;
Que vive com a chuva intimamente.

Os tontos, como eu, fazem poesia;
Uma árvore, só Deus é que a faria.


joyce kilmer
oiro de vário tempo e lugar
trad.  a. herculano de carvalho
asa
2003


21 julho 2013

almeida garrett / as minhas asas



Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

-Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m'as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
-Veio a ambição, cóas grandezas,
Vinham para m'as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
-Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

-Tudo perdi n'essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

  

almeida garrett



20 julho 2013

alberto caeiro / eu nunca guardei rebanhos



Eu nunca guardei rebanhos, 
Mas é como se os guardasse. 
Minha alma é como um pastor, 
Conhece o vento e o sol 
E anda pela mão das Estações  
A seguir e a olhar. 
Toda a paz da Natureza sem gente  
Vem sentar-se a meu lado. 
Mas eu fico triste como um pôr de sol  
Para a nossa imaginação, 
Quando esfria no fundo da planície  
E se sente a noite entrada 
Como uma borboleta pela janela. 
Mas a minha tristeza é sossego 
Porque é natural e justa 
E é o que deve estar na alma 
Quando já pensa que existe 
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. 

Como um ruído de chocalhos 
Para além da curva da estrada, 
Os meus pensamentos são contentes. 
Só tenho pena de saber que eles são contentes, 
Porque, se o não soubesse, 
Em vez de serem contentes e tristes,  
Seriam alegres e contentes. 

Pensar incomoda como andar à chuva 
Quando o vento cresce e parece que chove mais. 

Não tenho ambições nem desejos  
Ser poeta não é uma ambição minha  
É a minha maneira de estar sozinho. 

E se desejo às vezes 
Por imaginar, ser cordeirinho  
(Ou ser o rebanho todo 
Para andar espalhado por toda a encosta 
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), 

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, 
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz 
E corre um silêncio pela erva fora. 

Quando me sento a escrever versos 
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, 
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, 
Sinto um cajado nas mãos 
E vejo um recorte de mim 
No cimo dum outeiro, 
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, 
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, 
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz 
E quer fingir que compreende. 

Saúdo todos os que me lerem, 
Tirando-lhes o chapéu largo 
Quando me vêem à minha porta 
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. 
Saúdo-os e desejo-lhes sol, 
E chuva, quando a chuva é precisa, 
E que as suas casas tenham 
Ao pé duma janela aberta 
Uma cadeira predilecta 
Onde se sentem, lendo os meus versos. 
E ao lerem os meus versos pensem 
Que sou qualquer cousa natural - 
Por exemplo, a árvore antiga 
À sombra da qual quando crianças 
Se sentavam com um baque, cansados de brincar, 
E limpavam o suor da testa quente 
Com a manga do bibe riscado.



alberto caeiro
o guardador de rebanhos



19 julho 2013

manuel antónio pina / theo



Às vezes o gato fitava
com estranheza
o que de nós (um excesso)
se interpunha entre nós e o gato,
a nossa presença.



manuel antónio pina
moradas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012


18 julho 2013

luís filipe parrado / natureza morta com maçãs



É triste
o espectáculo do amor
apodrecendo aos poucos,
na fruteira
as maçãs que te trouxe
têm agora a pele seca e enrugada.



luís filipe parrado
entre a carne e o osso
2012



17 julho 2013

carlos de oliveira / sobre o lado esquerdo



De vez em quando a insónia vibra com a
nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas
uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas
da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme
pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo
e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
1968



16 julho 2013

antónio ramos rosa / mar



Para além dos signos
O ponto de partida
O mesmo arco
As estradas leves
Quem escreve
Um mundo
A palavra
A delicada majestade
O horizonte das palavras

  

antónio ramos rosa


15 julho 2013

ruy belo / espaço preenchido




Somos todos de aqui. Basta-nos a pátria
que uma tarde de domingo -nos consente
entre folhas de outono e frases de abandono
E abrem-se-nos ruas
para ir a sítios demasiado precisos
quando um só sítio se encontra
ao fim de todas as ruas e de todos os rios
Somos todos da raça dos mortos
ou vivos mais além
Mensagens de outra pátria não as traz
arauto algum que o nosso tempo vestisse

O que é preciso é dar lugar
aos pássaros nas ruas da cidade



ruy belo
relação
todos os poemas I
assírio & alvim
2004