06 outubro 2024

leopoldo maría panero / diário do manicômio de mondragón

 



 

 

20 de abril
 
Entro no bar dos enfermos. Ele está repleto de folhas secas e amarelas que lembram pessoas velhas. Caminhando na direção do balcão, piso em algumas delas, que se parecem com álbuns ou lembrancinhas. O garçon apoia os cotovelos no balcão do bar, próximo à sua cabeça há uma Coca-Cola. Ele me conta de um crime que cometeu há muito, muito tempo. Então esfrega um pano de prato em sua testa e sussurra: oh, minha cabeça, minha pobre cabeça!
 
 
 
leopoldo maría panero
poemas do manicômio de mondragón
trad. ayrton a. badriah, pedro spigolon e tiago rendelli
editora urutau
2024
 
 



05 outubro 2024

miguel bonneville / livro do daniel

 



 
LXX.
 
é certo que há uma tristeza latente.
é certo que os corpos se despediram da paixão
e ali ficam –
suspensos.
 
pode não ser nada.
 
pode ser também que seja só o inverno.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024



04 outubro 2024

poesia / 20 anos de blogue!








 

billy collins / depois de ouvir que foras embora

 
 
Sentei-me um bocado num banco no parque.
Estava a chover levemente mas não se tratava de um filme
embora um casal passasse apressado,
a rapariga com o casaco dele pela cabeça,
e os jogadores de xadrez estivessem a reunir as peças
e a dispersar-se pelas ruas.
 
Não, era uma coisa diferente.
Podia ter jurado que os carvalhos grandes
tinham aparecido ali de um dia para o outro.
E que aquele pombo parecia
ter sido em tempos uma carta de jogar
que um ilusionista transformara com o movimento de um lenço.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023




03 outubro 2024

herberto helder / filhos não te são nada

 



 

 
filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas
que escreveste contra tudo, pais e filhos,
lugar e tempo,
filha é aquela que despes dos pés à cabeça,
perdendo os dedos nos nós que tem pelo cabelo abaixo,
e só pelo desejo que te traz de viver ou morrer dela,
desejo de ser o mesmo punho de cinza
deitado à espuma nos extremos da terra,
filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários
                                                       quando dormem,
essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas
onde hás-de ter o trabalho artesanal da morte:
o que de tudo reste pode ser testemunho distraído e mais
                                                                           nada,
tu sim vais tecendo e vendo tecer-se a tua dita atrás,
e essa atenção ilumina-te os nós dos dedos
e o cabelo todo aos nós por ela baixo
– a morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se
                                                                  apaga,
e tu olhas entre as coisas pequenas
e para onde olhas é essa parte alumiada toda
 
 
 
herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014




02 outubro 2024

sophia de mello breyner andresen / manhã de outono num palácio de sintra

 
 
 
 
Um brilho de azulejo e de folhagem
Povoa o palácio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado
 
Ele não quis ouvir o alaúde dos dias
Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mão rejeitou o sussurro das águas
 
Mas o pequeno palácio é nítido – sem nenhum fantasma –
Sua sombra é clara como a sombra de um palmar
No seu pátio canta um alvoroço de início
Em suas águas brilha a juventude do tempo
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 



01 outubro 2024

eugénio de andrade / ainda esta poeira sobre o coração

 



 

 
Ainda esta poeira sobre o coração
queria que chovesse sobre os ulmeiros
sair limpo desses olhos
da luz que se demora a polir os seixos
 
A corrosiva música das vogais que te devora
o silêncio do muro
às vezes quase azul
o verão afinal onde o ar é mais duro
 
 
 
eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976




30 setembro 2024

vasco graça moura / interior

 
 
 
o revólver de um ferro subcutâneo
o excelente amor intravenoso
o tribunal de oitava e nona instância
um louco vinte vezes furioso
 
teu belo corpo de maçãs ao colo
a escuridão relativa dos teus passos
o sumo de laranja em moderados goles
e de cigarros três ou quatro maços
 
o silêncio em repouso nas ampolas
onde convergem determinados sóis
o fantástico asseio das escovas
o bordado escondido dos lençóis
 
a pietá d’avignon ao fim da sombra
junto à ternura espessa das madeiras
o ângulo de gesso das paredes
onde já quase se pressente a noite
 
 
vasco graça moura
semana inglesa
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 



29 setembro 2024

miguel oliva teles / gaivotas


 

 
gaivotas
entrando dentro de casa
no seu canto memoriado
não porque haja no mar tempestade
mas porque é Porto
meu
afinal sempre meu
e contendo toda a minha idade.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021





 

28 setembro 2024

sílvia penas / nunca soube diferenciar o poema do mundo

 



 

 

NUNCA SOUBE DIFERENCIAR O POEMA do mundo
nem do meu corpo
mal distingo um cais ou o peso de um entardecer
da pele avultada que arredonda as unhas
mas posso, por exemplo, colocar a palavra ilha
no limite do esterno aonde só chega o ar
e a partir daí, talvez pronunciar povo
muitas vezes, a partir daí
a partir daí: a vida
 
 
e o resto céu
 
 
 
sílvia penas
o resto é céu
editora urutau
2021
 



27 setembro 2024

nuno júdice / partida



 
Todo o espaço é uma linha no centro do átomo
a que se reduz cada homem, no seu canto de solidão. O horizonte,
que nos parece imenso com o seu desenho matinal,
cabe no fundo de um copo, quando bebemos o primeiro
café, em que os sonhos da noite se desfazem com um sabor
amargo a dia de inverno. E as nuvens descem ao nível dos olhos,
para que as metamos no dedal de uma costura de limites,
e o seu contorno sirva de renda à almofada do tédio. Então,
o ser soltar-se-á desta caixa vazia. Levará com ele o
horizonte e as nuvens; e só se nos agarrarmos a um fio de névoa
poderemos seguir o seu caminho, até esse rebordo de
falésia que o corpo não transpõe. Para lá dele, é o mar
da essência, com as suas marés de inquietação e de
certeza, e o abismo de dúvida que se abre quando o
temporal nos ameaça. Para trás, ficou a existência,
a vida, as coisas concretas, como os sentimentos e
as palavras que formam e transformam o que somos. Porém,
nesta fronteira, que fazer dos caminhos que se nos abrem?
Como avançar, sem barco ou rumo, em direcção a que
porto? E que nos espera no regresso ao lugar de
onde ninguém deve partir se não tiver, no bolso, a carta
de chamada, o endereço, a voz acolhedora de um deus?
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



 

26 setembro 2024

paul éluard / dignidade simétrica bem partilhada

 
 
 
Dignidade simétrica bem partilhada
Entre a velhice das ruas
E a juventude das nuvens
Janelas fechadas mãos trémulas de claridade
Mãos como fontes
E a cabeça dominada.
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




25 setembro 2024

samuel beckett / worstward ho

 
 
3/
Aquilo levanta-se. O quê? Sim. Dizer que se levanta e fica de pé. Teve de se levantar por fim e ficar de pé. Dizer ossos. Ossos nenhuns mas dizer ossos. Dizer chão. Chão nenhum mas dizer chão. De modo a dizer dor. Mente nenhuma e haver dor? Dizer que sim que os ossos podem doer até não haver alternativa senão levantar. Dalgum modo levantar e ficar de pé. Ou melhor pior restos. Dizer restos de mente onde nenhuns para permitir a dor. Dor dos ossos até não haver alternativa senão levantar e ficar de pé. Dalgum modo levantar. Dalgum modo ficar d epé. Restos de mente onde nenhuns só para a dor poder haver. Aqui dos ossos. Outros exemplos se preciso for. De dor. Alívio de. Mudança de.
 
 
 
samuel beckett
últimos trabalhos de samuel beckett
tradução de miguel esteves cardoso
o independente / assírio & alvim
1996