25 setembro 2022

herberto helder / teoria sentada

 




II

Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.
 
Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão — é como amar,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.
 
Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que se sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
— É com as vozes que o silêncio ganha.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996






24 setembro 2022

joão rebocho / no largo da catedral de santiago

 



 

no largo da catedral de Santiago
num dos cantos
com uma máquina de música:
à margem do senso comum
Francisco António
adotado pela dark web,
vive de fazer algemas,
alguma serve-me
e eu:
qual a imperfeita?
a eterna?
 
 
 
joão rebocho
munições infinitas
heteronimus
2022

 





23 setembro 2022

diana v. almeida / aos vinte anos

 




 

Aos vinte anos
Dylan Thomas
surge-me em sonhos
cigarro aceso
olhar aberto
             onde está o caminho?
diz
de onde
vem a palavra
 
lavrada
pelos corredores da noite
ao alto dia
cruzando luas
 
desde as
paredes do mar
água vivente
ao crescente mapa do amor
de pólo a pólo
 
da terra tumefacta
ao alto sol
cruzando luas
 
a palavra cantante
o verbo ardente
muro vivo do poema
corpo sílaba
sangue
 
doce sono
túrgida torrente.
 
 
 
diana v. almeida
cosmos e casas
editora urutau
2021





22 setembro 2022

pat boran / poção

 
 
Verão. Tempo da minha mãe. Um lugar
onde tudo era possível – ficar a pé
até tarde, trocando o dar graças
após as refeições por gelado e uma chávena,
 
nunca um copo, daquele sumo especial
que ela fazia com açúcar, limões e
um pó cujo uso misterioso
não pode ter-se restringido ao nosso clã
 
embora nenhum dos amigos a quem perguntei
se lembre de ver a mãe naquela fila
na farmácia Hipwell onde a minha passava
meio dia aos sábados, a dizer “E como está?”
 
a cada pessoa que chegava. O que é estranho.
Pois ela juntava-o à água e fazia a água mudar.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




21 setembro 2022

luís a. fernandes / no quintal havia um limoeiro

 



 
no quintal havia um limoeiro
transplantado pelo pai
onde a mãe secava as toalhas
para lhes dar cheiro
 
comíamos à sua sombra
e bebíamos limonada.
fomos crescendo todos
ele sempre mais que nós.
 
quando a mãe desapareceu
de nossa casa
os limões começaram
a apodrecer nos ramos.
 
 
 
luís a. fernandes
nervo/15 setembro/dezembro 2022
colectivo de poesia
2022

 



 


20 setembro 2022

carlos tê / cavaleiro andante




 

Porque eu sou o cavaleiro andante
Que mora no teu livro de aventuras
Podes vir chorar no meu peito
As mágoas e as desventuras
 
Sempre que o vento te ralhe
E a chuva de maio te molhe
Sempre que o teu barco encalhe
E a vida passe e não te olhe
 
Porque sou o cavaleiro andante
Que o teu velho medo inventou
Podes vir chorar no meu peito
Pois sabes sempre onde estou
 
Sempre que a rádio diga
Que a américa roubou a lua
Ou que um louco te persiga
E te chame nomes na rua
 
Porque sou o que chega e conta
Mentiras que te fazem feliz
E tu vibras com histórias
De viagens que eu nunca fiz
 
Podes vir chorar no meu peito
Longe de tudo o que é mau
Que eu vou estar sempre ao teu lado
No meu cavalo de pau
 
 
 
carlos tê
110 anos, 110 poetas
antologia comemorativa dos
cento e dez anos da universidade do porto
u.porto press
2021




 

 





 

19 setembro 2022

sandra costa / luz de setembro



 
                                                          – se eu soubesse a palavra,
                                                          a única, a última,
                                                          e pudesse depois ficar em silêncio para sempre…
 
                                                          Vergílio Ferreira

 
 
 
A sequência é simples. Acrescento um dia a outro dia.
Os meses sucedem-se, as estações acontecem e,
sem que sejam necessários milagres, cai sobre mim
a luz de Setembro, essa sombra que sou.
Vem uma flor, depois outra flor e as árvores,
como as nuvens, ao abrigo dos silêncios que subsistem
em certos vocábulos, como ruína, hesitação, relâmpago,
melancolia, acendem-se e mudam de cor.
Algures, cortam os campos ao milho, seca-se e extrai-se
a eira da vagem do feijão, sobem-se as vindimas até ao desvão
do mosto e ainda no sismo da vertigem que é a infância
alguém descobre ou perde um templo feito de sol.
Dou um passo e mais um passo. Descalça, sempre
descalça, faça chuva ou esteja calor, que Setembro é
um mês de incertezas, para que me doam menos
os trilhos e as trevas dos desencontros e os mistérios
que poderiam ter ocorrido junto ao mar.
de verso em verso, saio porta fora, no rasto da última
luz de Setembro, essa sombra que sou, como se procurasse
a definitiva palavra de um poema de Vergílio Ferreira e
assim rompesse o lado mais impuro das candeias.
A sequência é simples. Acrescento amor às sombras
que ficarão para sempre.
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021
 


 

18 setembro 2022

valter hugo mãe / o pássaro não esquece a canção

 
 
o pássaro não esquece a canção
 
afundá-lo no olhar
a roubar o vento
e
navegar para casa
navegar para casa
 
onde a lágrima de cristal
pousa entre as louças da cozinha
 
amar é servir para outro mundo
 
 
 
valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
primeiro livro, segunda parte
caxinas, dois
assírio & alvim
2018
 




17 setembro 2022

sharon olds / monarcas



 
Toda a manhã, eu sentada a pensar em ti,
as Monarcas têm passado. Sete andares acima,
à esquerda do rio, dirigem-se para
sul, as suas asas vermelho-escuras como
as tuas mãos de talhante, as veias
estampadas das suas asas como as tuas cicatrizes.
Mal conseguia sentir as tuas palmas rudes enormes
sobre mim, tão leve era o teu toque,
algo delicado, gretado, que arranhava tal pata de insecto
sobre o meu peito. Nunca ninguém
me tocara antes. Nem sequer sabia
abrir as pernas, mas senti as tuas coxas,
com uma penugem de ouro rubro,
                                                              abrindo-se
entre as minhas pernas como um
par de asas.
A impressão do meu sangue em cavilha sobre as tuas coxas –
uma criatura alada presa ali por alfinetes –
e depois partiste, como havias de partir
uma e outra vez, as borboletas deslocando-se
imensas pela minha janela, flutuando
para sul para se transformarem, atravessando
fronteiras pela noite, a sua nuvem difusa
vermelhas de sangue, o meu corpo sob o teu,
a beleza e o silêncio das grandes migrações.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




 


 

16 setembro 2022

miguel serras pereira / le temps retrouvé

 



 

Tu não sabias que cantavas
e eu nada sabia
mas já todas as fontes em que eu bebia se calavam
sempre que tu adormecias
 
Eu nada sabia do tempo que traria
a paz do tempo ao tempo que passava
e todo o tempo que passava se perdia
Mas tu não sabias que cantavas
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022





 


15 setembro 2022

manuel a. domingos / a meu favor

 


 

A meu favor
tenho o prédio vazio
o miar do gato o tapete que
não escorrega devido
ao antiderrapante
 
E tenho estas paredes
higienicamente brancas o murmúrio
do vento no respirador da casa
de banho o cotão debaixo
da cama feita de fresca
 
 
 
manuel a. domingos
aprendiz
volta d´mar
2019





14 setembro 2022

pier paolo pasolini / ao príncipe

 



 

Se voltar o Sol, se cair o crepúsculo,
     se a noite tiver sabor de noites futuras,
se uma tarde de chuva parece regressar
     de tempos muito amados e jamais
                                               possuídos,
eu já não fico feliz, nem disso retiro prazer ou
                                                   sofrimento
     já não sinto, diante de mim, a vida inteira…
Para se ser poeta, é preciso ter muito tempo
     horas e horas de solidão são a única
                                                        maneira
de dar forma a alguma coisa, que é força,
                                                     abandono,
     vício, liberdade, de dar estilo ao caos.
Eu tempo já tenho pouco: por culpa da morte
     que avança, no ocaso da juventude.
Mas também por culpa deste nosso mundo
                                                        humano,
     que aos pobres tira o pão, aos poetas a paz.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




13 setembro 2022

javier salvago / outra idade

 
 
Passou a idade de eu ser poeta
porque tudo passa, é a lei da vida;
embora continue, por vício ou por instinto,
 
falando a um papel, a poesia
já não é a minha pátria nem o meu território.
Apenas regresso às vezes, de visita,
 
Como quem volta aonde foi feliz.
 
 
 
javier salvago
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997