03 setembro 2020

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno


1

por esse caminho vais dar a um ribeiro
oculto nas pedras, e daí são dois passos pró inferno!
fiquei surpreso com a informação, assim de cara nua
à saída de casa, pousando a mala azul já encharcada,

como se houvesse destinos nesta terra! encolho os ombros,
as borboletas mudam de cor, gigantescas, violeta castanho,
tudo é real e diferente de si, mesmo as anémonas
e o cheiro de morte que deitam por dentro. os planetas,

acredito, emitem pequenos sinais, mas tenuamente
deitam-se no ovo oco do céu,
e a grande chuva entra-me pelo corpo e fica
dentro a chover, coisa inútil, intensa.

foi assim que aprendi que os homens morrem aos pedaços,
e muito antes de eu nascer já esta torpe história seguia
«o seu rumo», aqui e além facilitado pela chacina militar,
e ninguém pedirá a minha opinião, que não é nenhuma.

o poema traz consigo um fresco calor escuro,
é um pouco cão, miserável e mudo.
os fios eléctricos atravessam a rua, lado a lado; o cigarro lançado
ao ar, explode contra as folhas.

dorme comigo, ribeiro seco.
deita-me na lisa pedra que te encerra. tudo começa
no cais de água nenhuma; um pouco cão, mais nada:
a arte do soneto e alguma rima.



antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996






02 setembro 2020

herberto helder / lugar



V
Explico uma cidade quando as luzes evoluem.
Quando é assaltada pelos gestos devotados.
Explico um espaço solene e unido
por virtude do fogo infantil.
Com a boca sobre um casulo
de som, uma criança
é sempre livre e encerrada.
Explico uma cidade através
de brilhos interiores. De pedras raras
viradas na palma da mão.

Cidades são janelas em brasa com cortinas
puras, e pracetas com chuva entre aspas.
Rostos de mulheres em jarras.
Ou girando sobre gonzos.
E por dentro de tudo a morte ou a loucura.
Estátuas encarnadas cheias
de peixes. E o silêncio
dobrado para a frente, na força da luz.

Cidades existem entre as mães que contemplam
as flores e folhas
do sono. A criança roxa
e prolongada para dentro, como no fundo
de uma estampada idade do ouro.
Cidades são aposentos fixos
quer na cabeça, entre brasas, quer
no gosto, na audição.
Barulho de passos, profundidade,
devotamento misterioso.
É o girassol do talento materno,
amando o movimento por cima brilhante.
e atirado, pela fascinação
da noite, para o gelo virgem da terra.

Ao longo de sons sempre passaram
mulheres apaixonadas,
separando os pés sobre frígidas gotas.
Mulheres partindo, chegando, voltando
o corpo na luz suspensa
e inteligente. Mulheres cheias de uma
atenta suspeita.
Vergadas para o fundo de uma existência
dura e pura.

Cidades que se envolvem de ecos e em cuja
solidão extraordinária
as mulheres batem seus dedos puros.
Sua sinistra fantasia.
Tiradas dos limbos segundo um ardente
princípio de ilusão.
Amadas tragicamente por Deus e entrando
na corrupção de Deus.

São quentes e frias, colocadas sobre moventes
comoções antigas.
Metidas pelo espanto dentro, enterradas
até ao livre espírito e ao terror.
Fábulas de comércio.
Imagens delicadas de uma suave indústria.
Cidades dotadas de uma inteira falta de intenção.
Abertas a ligeiras canções tenebrosas e,
sobre as graves canções, fechadas
como pedras frias.

Na noite impressa nos dois lados e,
pelo mais escuro lado antigo,
a revelação. Cada cidade é uma vingança
anterior onde a beleza passa
vestida de mulher.
Beleza lembrada e relembrada em seu
circuito ardente.
Escoada, esquecida.
E logo ressurrecta.
Tão próxima.
Cidades vazias de cócoras contra a noite,
ao lado de uma enorme ressurreição. Lírica
antropofagia.

E os arquitectos deslocam-se, unindo
nos dedos a pedra encurvada.
Ouvindo o som contra o som.
Imaginando logo uma paixão espantosa
no sono.
E agarrando-se às vozes, como as vozes brilhantes
se agarram à língua para fora.
Arquitectos fechados sobre as mãos com instrumentos
que se voltam no ar. Principiando
a queimar-se.
Isolando concepções geladas
que entram na terrível purificação universal.

E então levanta-se o exemplo dos violinos,
voando à altura das janelas.
Dos malmequeres aglomerados.
De galáxia em galáxia de encontro às cabeças.
E eis o que se ama: o sino
das mulheres e dos homens distantes.
Arco ligado que leva a música
pelos dedos à pedra.
Eis que se ama as cordas, as chaves,
a caixa soante dos mortos.





herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996





01 setembro 2020

ruy belo / primeiro poema de outono



Mais uma vez é preciso
reaprender o outono –
todos nós regressamos ao teu
inesgotável rosto
Emergem do asfalto aquelas
inacreditáveis crianças
e tudo incorrigivelmente principia
Já na rua se não cruzam
olhos como armas
Recebe-nos de novo o coração

E sabe deus a minha humana mão




ruy belo
todos os poemas I
cidade
assírio & alvim
2004







31 agosto 2020

federico garcia lorca / balada da água do mar



O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

– Que vendes tu, rapariga,
de turvos seios ao ar?

– Vendo, senhor, água
do mar.

– Que levas tu, jovem negro,
misturado em teu sangue?

– Levo, senhor, água
do mar.

– Essas lágrimas salobres,
onde te nascem, mãe?

– Choro, senhor, água
do mar.

– Coração, esta amargura
tão funda, donde te vem?

– Amarga muito, a água
do mar.

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.




federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013







30 agosto 2020

nuno júdice / tempo livre



Numa tarde de domingo, em Central Park, ou
numa tarde de domingo, em Hyde Park, ou
numa tarde de domingo, no jardim do Luxemburgo, ou
num parque qualquer numa tarde de domingo
que até pode ser o parque Eduardo VII,
deitas-te na relva com o corpo enrolado
como se fosses uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o teu vestido
de domingo, e deixa-te nua sob o sol frio
do inverno de uma cidade que pode ser
Nova Iorque, Londres, Paris, ou outra qualquer
como Lisboa. As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E tu,
com os dedos presos na relva húmida, vês
o teu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de inverno.



nuno júdice
poesia do mundo/2
afrontamento
1998






29 agosto 2020

joão rebocho / saíres do teu corpo





saíres do teu corpo
ou deste livro
da cena de ver de longe
o teu corpo,
e como ficaste velho
duas horas até aos correios,
velho ou criança
ou fantasma
ou cansado de trabalhar no farol
subir ao farol
com um fósforo
aceso, e o vento
o equívoco
muda para inequívoco,
depois
ninguém compra, e tu
teres uma velhice miserável



joão rebocho
não reclamados
heteronimus
2020






28 agosto 2020

rui diniz / ils ont bu l´absinthe avec odette dulac



Bebi absinto com Odette Dulac. Senti-me então
especialmente disposto a escrever e compus
um poema sobre Peale Bishop, morto em 44.
Não era a peste de Lisboa que então me encheu
de desespero. Não eram os veleiros de Blood
que iam lentamente consumindo a memória
leal dos heróis. Não era o meu cérebro, enegrecido
por vezes pela morte de gertrude, de Lautrec, do
próprio Cocteau, afogado em ópio.

Bebi gim com Júdice e Ernst, uma época
inteira mergulhada em cogitações. Uma noite
acordei e tinha a boca cheia de sangue. Ao meu
lado Anya Seton respirava docemente.
Pus então um disco e acendi uma
luz. Os anos escoavam no soalho surdamente.
Depois saí. Bach – podia escutá-lo ainda daquela
praia tão antiga onde o próprio Van Gogh
cortara a orelha. O terror acompanhava
a vastidão das espumas, os rochedos soletravam
a desolação.

Bebi esse fogo nos meus nervos – vodka de
milénios, alongamento dos naufrágios para
o negrume irreal das costas, o pudor que se
inclinava para o areal como um século negro.
O verão acendia as pequenas doenças de infância.
e ouvia de novo, fora do sonho, as vagas sem idade
como um sonho.

Bebi com Zizi no bar Z. numa shooting gallery
estive com Auden e Zane Grey.
li.lhes as cartas estranhas de Cowley e
Faulkner. Sorrimos de todas as gerações.
Também eles beberam outrora com Dulac o absinto.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






27 agosto 2020

gonçalo m. tavares / ignorância



Uma ignorância súbita, de uma intensidade incalculável.
É não entender da forma mais humana que existe.
Não é o medo, no animal,
Não é a explosão na matéria: é o espanto.




gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004













26 agosto 2020

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)



6

NÃO temos margens, na verdade,
Nem tu nem eu.



guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965












25 agosto 2020

mia couto / danos e enganos



Aquele que acredita ter visto o mundo,
não aprendeu a escutar-se no vento.

Aquele que se deitou na terra,
vestiu sonhos como se fossem vidas
e tudo o mais fossem regressos.

Mas aquele que tocou o fruto
provou a inicial doçura do tempo.

E quando tombou
de si mesmo se fez semente.




mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013







24 agosto 2020

alejandra pizarnik / lanterna surda




     Os ausentes respiram e a noite é densa. A noite tem a
cor das pálpebras do morto.
     Toda a noite faço a noite. Toda a noite escrevo. Palavra
por palavra eu escrevo a noite.



alejandra pizarnick
antologia poética
extracción de la piedra de locura - 1968
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020











23 agosto 2020

alberto caeiro / um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.



XLV

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes.


Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de coisa a coisa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!

7-5-1914


alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946







22 agosto 2020

luís carlos patraquim / sentam-se sob as acácias no asfalto roto




Sentam-se sob as acácias no asfalto roto
os mutilados com cigarros de embalar
Nenhum som os recorta.
E todos os sentidos foram amputados.
Nem para a tarde crescem frustrados.
Esperam. Que inconclusa forma
os limita em fórmula de serração?
Que ameaça os delira? Nenhuma flor
explode, poeta, no coração?
Os mutilados sonharão? Suas pernas?
O desejo, fruto podre adubando. Outra mão?
Que triste palavra os baba
no cigarro morto! Vendem.
Nenhum incesto os estanca.
À revelia do sol, os mutilados
montam banca.



luís carlos patraquim
morada nómada
língua morta
2020