IV
Mal se empina a cabra com suas patas traseiras
na lua, e o cheiro a trevo
no focinho puro, e os cornos no ar
arremetendo aos astros. E sobre a solidão das casas,
entre o sono e o vinho derramado,
curvam-se os cascos de demónio –
ágeis, frágeis.
E o sonâmbulo desejo do nosso coração
tudo absorve ao alto, como uma tenebrosa
vertigem
E quando o esplendor invade as bagas
Venenosas – patético , o silêncio dos dedos
docemente o procura.
Então as veias, suspensas, mudam
a conjunção
do sangue que ascende e que mergulha.
Uma estrela tremenda queima a fronte de apoIo.
E a mandíbula, os pés, a invenção, a loucura e o sono
secreto:
– terrível, a beleza espalha
sobre nós
a branca luz violenta.
Um dia começa a alma, e um caçador atinge
a cabra ao alto, fremente, no flanco
com uma flecha casta.
Lentamente cantamos o espírito dos livros.
E brilha toda a noite, no sangue espesso
e maduro do bicho
maravilhoso,
o dardo do caçador.
Um dia começa o nosso amor – ardente, infeliz,
misterioso. Porque a cabra
é qualquer coisa de materno e antigo –
e o nosso coração a rodeia,
e bate. Durante a noite irrompe da terra o trigo.
– Subtil, a sombra das flautas
subindo pelas mãos.
E sob a nossa boca roda a imagem do mundo, rosácea
abstracta, ou rosa aglomerada
e quente. Na penumbra das casas, as mulheres
respiram – surdas, cegas e loucas
de beleza. E no sono aberto as palavras são
mortalmente confusas.
– Mal se levanta a cabra sobre as letras puras, sobre
a forma árdua e amarga da melancolia.
herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996