thomas allen
fathom 2006
não me fales mais
dessa solidão de papel
eu ainda tenho a sede das oliveiras
a paciente sede
dos rios que nunca chegam
dos rios avistados
que não se podem tocar
eu ainda tenho a dor da terra queimada
a fortíssima dor
das chuvas que não voltam
das raízes que morrem
sem poder gritar
o teu nada
é só mais um perfume!
e eu
eu tenho sangue na voz
tenho no peito o grito do lobo
a imensa tristeza de uma lua
que o céu não quis
gil t. sousa
poemas
2001
(…)
Quantas vezes,
ao notar que o meu passado começava a pesar-me,
que havia muita gente que pensava ter um crédito para comigo,
material e moralmente,
quantas vezes,
quando o passado me pesava de mais,
tivera a esperança de cortar tudo pela raiz:
mudar de ofício, de mulher, de cidade, de continente
— um continente a seguir ao outro até dar a volta completa —,
de costumes, de amigos, de negócios, de clientela.
Era um erro,
quando percebi era tarde.
Porque deste modo
não fiz senão acumular passados sobre passados
atrás das costas,
multiplicá-los,
aos passados,
e se uma vida me parecia já demasiado cheia
e ramificada e enredada para andar sempre com ela,
imagine-se muitas vidas,
cada uma com o seu passado
e com os passados das outras vidas
que continuam a ligar--se uns aos outros.
Não servia de nada dizer às vezes:
que alívio, ponho o conta-quilómetros a zero,
passo a esponja pelo quadro:
no dia a seguir ao da chegada a um país novo,
já este zero se tornara um número com tantos algarismos
que já não cabia no contador,
que ocupava o quadro de uma ponta à outra,
pessoas, lugares, simpatias, antipatias, passos em falso.
(…)
italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço barreiros
(grafia adaptada)
publico
2002
Conforta-me saber agora
que um dia, não sei bem quando,
terei quem me limpe o granito polido
de folhas velhas e de pó
e talvez me sinta
numa árvore próxima,
num fruto,
numa erva,
e de par em par
formando um elo,
a presença de alguém
que foi sem saber ser,
que perdeu nos dedos os porquês
e amor,
alguém viveu, amor,
alguém sorriu, amor,
alguém se fumou até à morte,
alguém se pensou até à morte,
se debateu de mais até à morte
sobre o sentido das pegadas nestes trilhos
traçando no chão o seu caminho
sem traçar o seu destino.
E amor,
este coração devoluto
deu guarida a sem-abrigo em excesso,
que serviu de garagem e armazém,
de hotel e pensão rasca,
de cabide e asilo, de casa de alterne
e solar de ricos
é agora um sanatório
abandonando-se a si mesmo
no desgaste de dois murmúrios.
Mas amor, olha-me nos olhos
e não chores,
evita que os teus joelhos
sangrem sobre a pedra que me cubra
e sente-me no verde de qualquer musgo
e anda para a frente e sê feliz
tem filhos e filhas e escreve um livro
sobe à tua serra e corre e grita
e sente o eco dos teus gritos,
amor,
não te abandones assim, ao Deus-dará,
não te abandones assim sem sentido
nessa tristeza,
porque amor,
neste coração devoluto
uma morada
uma casa branca
um fruto.
o céu
é a parte mais venenosa do olhar
é um vício inútil
como uma ideia
e leva-me os dias
numa suave cegueira
para os largar
em lugares impossíveis
mais raros
do que o próprio azul
com que me esmaga
de encontro
a
este instante
gil t. sousa
poemas
2001
III
[ amores sucessivos]
O mais frequente é que o homem ame várias vezes durante a sua vida. Este facto levanta uma série de questões teóricas, para além das questões práticas que o apaixonado terá de resolver por sua conta. Por exemplo: esta pluralidade de amores sucessivos faz parte da natureza masculina ou será um defeito, um resíduo vicioso de primitivismo, de barbárie? Seria o amor único o ideal, o perfeito, o desejável? Haverá, nesta matéria, alguma diferença entre o homem normal e a mulher normal?
Evitaremos, para já, qualquer tentativa de resposta a tão perigosas questões. Sem tomar a liberdade de opinar sobre elas, consideremos, sem mais, o facto indiscutível de que o homem tem quase sempre muitos amores. Como nos referimos a formas plenas deste sentimento, fica excluída a pluralidade da coexistência e retemos apenas a pluralidade da sucessão.
Não implicará este facto uma dificuldade séria para a tese aqui sustentada, segundo a qual a escolha amorosa revela a natureza essencial da pessoa? Talvez, mas antes convirá lembrar ao leitor a observação trivial de que essa variedade de amores pode ser de duas espécies. Há indivíduos que amam várias mulheres ao longo da sua vida; mas todas elas reproduzem com uma insistência evidente o mesmo tipo de feminilidade. Às vezes, a coincidência é tão grande que as mulheres partilham as mesmas características físicas. Esta espécie de fidelidade larvada, em que através de muitas mulheres se ama, em rigor, uma única mulher genérica, é extraordinariamente frequente e constitui a prova mais directa da ideia que sustentamos.
Mas, noutros casos, as mulheres sucessivamente amadas por um homem, ou os homens preferidos por uma mulher, são, na realidade, de tipo muito diferente. Considerado o facto a partir da nossa ideia, significaria que a natureza essencial do homem teria mudado de urna época para outra. Será possível uma mudança tão radical do nosso ser? É um problema crucial, talvez decisivo, para uma ciência do carácter. Durante a segunda metade do século XIX era habitual pensar que o carácter se formava do exterior para o interior. As experiências da vida, os hábitos que criam, as influências do meio, as vicissitudes do acaso, os estados fisiológicos iriam decantando, como um sedimento, aquilo a que chamamos carácter. Não haveria, portanto, urna estrutura essencial, urna estrutura íntima anterior aos acontecimentos da existência e independente deles. Seríamos feitos, como a bola de neve, da poeira cio caminho que vamos percorrendo. De acordo com este modo de pensar, que exclui um núcleo radical da personalidade, não se põe, evidentemente, o problema das mutações radicais. O chamado carácter modificar-se-ia constantemente: à medida que se vai fazendo vai-se também desfazendo.
Razões de bastante peso, que não é oportuno enumerar aqui, inclinam-me, porém, a acreditar no contrário; parece-me, pois, mais exacto dizer que vivemos de dentro para fora. Antes que sobrevenham as contingências externas, o nosso carácter interior está já formado no essencial, e embora as circunstâncias da existência influam de alguma forma sobre ele, é muito maior a influência que o carácter exerce sobre os acontecimentos. Somos por norma incrivelmente impermeáveis em relação ao que nos acontece quando não está em sintonia com esse carácter inato que, em última instância, somos. Nesse caso dir-se-á também não podemos falar de mudanças radicais. Aquilo que éramos ao nascer, seremos na hora da nossa morte.
Não, não. Esta opinião goza, precisamente, da elasticidade suficiente para se moldar aos factos em toda a sua amplitude. Permite-nos distinguir as pequenas modificações que são introduzidas pelos acontecimentos exteriores no nosso modo de ser das outras modificações mais profundas que não obedecem a motivos casuais, mas à própria natureza do carácter. Eu diria que o carácter muda, se por esta mudança se entender propriamente urna evolução. E esta evolução, como a de qualquer organismo, é provocada e dirigida por razões internas, inerentes ao próprio ser, inatas, como o seu carácter. O leitor terá certamente a impressão de que por vezes as transformações daqueles que lhe são próximos lhe parecem frívolas, injustificadas, quando não decorrentes de motivos inconfessáveis, mas que noutros casos a mudança possui toda a dignidade e todo o sentido de um crescimento. É como o rebento que se torna árvore, a nudez que precede a renovação das folhas, o fruto que se segue à fronde.
Eis, pois, a minha resposta à objecção precedente. Há pessoas que não evoluem, caracteres relativamente estagnados (em geral, os de menos vitalidade, o protótipo do «bom burguês»). Jamais modificarão o seu esquema de escolha amorosa. Mas há indivíduos de carácter fecundo, rico de possibilidades e de destinos, que esperam ordeiramente o seu momento de explosão. Quase se poderia afirmar que esta é a norma. A personalidade sofre ao longo da vida duas ou três grandes transformações, que são como estádios diferentes de uma mesma trajectória moral. Sem perder a solidariedade, mais ainda, a homogeneidade fundamental com os nossos sentimentos passados, um belo dia percebemos que entrámos numa nova fase ou modulação do nosso carácter. É a isso que chamo uma mudança radical. Nada mais, mas também nada menos. O nosso ser profundo parece, em cada uma destas duas ou três fases, rodar uns graus sobre si mesmo, deslocar-se para outro quadrante do Universo e orientar-se para novas constelações.
Não será um acaso sugestivo que o número de amores verdadeiros pelo qual um homem normal costuma passar seja praticamente sempre o mesmo: dois ou três? E, além disso, que cada um desses amores seja cronologicamente localizável em cada uma destas fases do carácter? Não me parece, pois, exorbitante ver na pluralidade de amores a mais flagrante confirmação da doutrina aqui insinuada. A preferência por um novo tipo de mulher, corresponde rigorosamente a um novo modo de sentir a vida. O nosso sistema de valores alterou-se em maior ou menor grau — mantendo sempre uma fidelidade latente com o antigo — qualidades que antes não estimávamos, que talvez nem se quer percebêssemos, passam para primeiro plano, e um novo esquema de selecção erótica interpõe-se entre o homem e as mulheres que passam.
Só um romance oferece instrumental adequado para ilustrar esta ideia. Eu li extractos de um romance, que talvez nunca venha a ser publicado, cujo tema é, precisamente, este: a evolução profunda de um carácter masculino vista através dos seus amores. O autor — e é isso que me parece interessante — insiste também em mostrar a continuidade do carácter ao longo das suas transformações e os seus contornos divergentes, esclarecendo assim a lógica viva, a génese inevitável destas transformações. E uma figura de mulher reúne e concentra em cada etapa os raios dessa vitalidade em evolução, como essas figuras espectrais que se conseguem formar com luzes e reflectores sobre uma atmosfera densa.
ortega y gasset
estudos sobre o amor
trad. de elsa castro neves
relógio d´água
2002
a árvore está completa
e nua
e vai
sobe cor a cor
o olhar do homem
que hesita
do homem
que a si próprio
multiplica os dias
e os firma
no indiferente cair
das folhas
um a um
os dias e as folhas
na paisagem do homem
que a árvore
se aplica
a ceifar
como se a morte
fosse o consumar
dos sinais
de um ser
flor ou homem
eu
ou paisagem
o homem está completo
e nu
e parte
vai
esbate-se
debate-se
no desígnio
expresso
de um tempo
de um silêncio
que sem notícia
chega
gil t. sousa
poemas
2001