03 novembro 2017

vicente valero / voltar




Fui com o outro que eu fui, com o primeiro,
com o que não sabia fazer as pazes
nunca com a sua grande sede de saber mais… Queríamos
ver outra vez o sol que mal se via,
juntos, o sol fora de si, sem medo,
o fumo da tarde mais lenta sobre o mar:
ver outra vez o sol que mal se via.
E éramos dois agora e com sentido,
falando por falar, sozinhos, discorrendo
pelos caminhos brancos do passado,
brancos de luz ausente e doce, já de noite.
Vimos que o tempo é tudo o que vemos,
que tudo o que vemos se parece,
e um bosque junto ao mar não é somente um bosque,
é música também – e casa própria,
e ferida penetrante e muito espessa… Fomos
os dois pelos alcantis vermelhos
e secos do passado, juntos, sem as promessas
de então, lentamente. E lembro-me de que estava
tudo em desordem como no primeiro dia.



vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






02 novembro 2017

ezra pound / sobre a sua própria face num espelho




Oh face estranha aí no espelho!
Companheiro libertino, sagrado anfitrião,
Oh meu bufão varrido pela dor,
Que responder? Oh vós miríade
Que labutais, brincais, passais,
Zombais, desafiais, vos contrapondo!
Eu? Eu? Eu?
                                      E vós?




ezra pound
antologia poética
personae
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960



01 novembro 2017

anna akhmatova / elegias do norte



(2)
segunda


Ei-la pois – essa paisagem de Outono
De que tanto toda a vida eu tive medo:
E o céu – como um abismo em fogo,
E os sons da cidade – como do outro mundo
Escutados, alheios para sempre,
Como se tudo aquilo com que dentro de mim
Toda a vida lutei, recebesse uma vida
Separada e se corporizasse nestes
Cegos muros, neste negro jardim…
Mas nesse minuto por detrás do meu ombro
A minha antiga casa ainda me vigiava
Com um olhar semicerrado, sem benevolência,
Essa janela para sempre inesquecível para mim.
Quinze anos – como se quinze séculos
De granito eles tivessem fingido ser,
Mas eu era eu própria como um granito:
Agora suplicava, sofre, chama-me
Infanta do mar. Tanto faz. Não é preciso…
Era preciso era a mim própria convencer-me
De que tudo isso aconteceu muitas vezes
E não comigo só – com outros também,
E até pior. Não, pior não – melhor.
E a minha voz – e isso, creio, era
O mais assustador – disse da escuridão:
«Há quinze anos atrás tu com qual canto
Foste ao encontro desse dia, tu aos céus
E aos coros das estrelas aos coros das águas suplicaste
Que saudassem o solene encontro
Com aquele de quem hoje partiste…

Eis pois as tuas bodas de prata:
Chama os convidados, exibe-te, celebra!»

Março de 1942
Taskent



anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003






31 outubro 2017

marcos canteli / muda



Muda
a sensação da casa
com a pintura. Essa cor branda
dá lume
mas escurece a parede:

não despontou
                              a manhã


– como se esse branco
da luz
viesse apenas contigo


marcos canteli
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







30 outubro 2017

sophia de mello breyner andresen / homenagem a ricardo reis



I
Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
  Oferecendo a flor
                Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
                Não existe piedade
                Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
                Longo indelével rasto
                Que o não vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
                Vai sempre mais à frente
                Do que o teu próprio passo.



sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004







29 outubro 2017

bernardo soares / falo abismos... alastro-me em sonhar desmedido



Falo abismos... Alastro-me em sonhar desmedido, cheio de ver explicações... Fervilho em compreensão... Sou todo aéreo de perceberes...

Ouro de mim, sonhei-me em poeira, e o vento da realidade, erguendo-me, dourou do que eu fui as árvores e os casebres do caminho...

(Não te importe que isto assim fosse... Antes ser o ouro sobre os casebres que os casebres sob o ouro.)

Não te entristeças. Eu reinei no que nunca fui.

A abstenção da Carne foi uma coisa heráldica em mim...

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990




28 outubro 2017

vergílio ferreira / sim, amo-te, verdadeiramente



Évora, 15 de Outubro de 1948


Sim, amo-te, verdadeiramente,
Com essa possibilidade de estar todo inteiro no amor
Quando for caso disso.
Mas esqueces nas tuas dúvidas
Que a perfeição de uma ideia
Do ódio ou amor que se tem
É quase sempre a certeza que tudo em roda está bem.


vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008










27 outubro 2017

herberto helder / exorcismo




Oh vai, vai dormir, e vai aonde estão as tuas belas
                                                             mulheres

sobre cujos cabelos se verteu a mirra
e sobre cujos ombros se verteu o incenso fresco.



herberto helder
o bebedor nocturno
poemas mudados para o português
poemas do antigo egipto
porto editora
2015












26 outubro 2017

maria andresen de sousa / o pequeno mundo do pequeno escrevinhador



Aquele que ali traz um corpo hirto, nele se movendo
como em andas (lembrar Goya, a amarelada luz goyesca,
os homens altíssimos em perónios de pau e tropeçantes)

Aquele é um corpo que obedece a esticadores, o próprio rosto
marcado como cego, excepto à luz rasca da escusa ocasião; ele é
o que túneis discretos escavará em terrenos de um senhor

complacente e desatento;
“se não mais, usarei do meu servil talento
Obstinado e lento”




maria andresen de sousa
relâmpago
revista de poesia
nr. 16 abril
2005






25 outubro 2017

bob dylan / sonhei que vi st.º agostinho



Sonhei que vi St.º Agostinho
Tão vivo como tu e eu
Irrompendo por esses bairros
Na mais extrema miséria
Com uma manta debaixo do braço
E uma capa de ouro maciço
À procura das próprias almas
Que já foram vendidas

«Erguei-vos, erguei-vos,» gritou alto
Numa voz sem freio
«Saí, ó prendados reis e rainhas
E ouvi o meu triste lamento
Não está agora entre vós nenhum mártir
A quem possais chamar vosso
Segui então o vosso caminho e acordo com isso
Mas sabei que não estais sós»

Sonhei que vi St.º Agostinho
Vivo com fôlego ardente
E sonhei que estava entre aqueles
Que o abandonaram à morte
Oh, acordei enfurecido
Tão só e aterrorizado
Espalmei as mãos contra o vidro
E curvei a cabeça e chorei




bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
john wesley harding
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008








24 outubro 2017

pablo garcia casado / blues



a casa é um nojo sem ti o lava-loiça o quarto
de banho os lençóis sujos a comida a apodrecer
no frigorifico tu melhor que ninguém sabes que difícil

é conviver com um tipo como eu incapaz de enfrentar
assuntos tais como lavar a roupa o cesto
das compras a escolha de detergente ou a solidão

a minha vida é um nojo sem ti.


pablo garcia casado
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








23 outubro 2017

miguel torga / miniatura



Coimbra, 11 de Abril de 1957

Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança, também…
Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.

É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que ou voltasse
À pureza da semente.


miguel torga
diário VIII
1959




22 outubro 2017

álvaro de campos / dá-nos a tua paz



Dá-nos a Tua paz,
Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos
Nascem para a emoção rezada a ti;
Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina;
Deus absurdo da verdade absurda, mas que tem a verdade das lágrimas
Nas horas de fraqueza em que sentimos que passamos
Como o fumo e a nuvem, mas a emoção não o quer,
Como o rasto na terra, mas a alma é sensível...
Dá-nos a Tua paz, ainda que não existisses nunca,
A Tua paz no mundo que julgas Teu,
A Tua paz impossível tão possível à Terra,
À grande mãe pagã, cristã em nós a esta hora
E que deve ser humana em tudo quanto é humano em nós.
Dá-nos a paz como uma brisa saindo
Ou a chuva para a qual há preces nas províncias,
E chove por leis naturais tranquilizadoramente.
Dá-nos a paz, porque por ela siga, e regresse
O nosso espírito cansado ao quarto de arrumações e coser
Onde ao canto está o berço inútil, mas não a mãe que embala,
Onde na cómoda velha está a roupa da infância, despida
Com o poder iludir a vida com o sonho...
Dá-nos a tua paz.
O mundo é incerto e confuso,
O pensamento não chega a parte nenhuma da Terra,
O braço não alcança mais do que a mão pode conter,
O olhar não atravessa os muros da sombra,
O coração não sabe desejar o que deseja
A vida erra constantemente o caminho para a Vida.
Dá-nos, Senhor, a paz, Cristo ou Buda que sejas,
Dá-nos a paz e admite
Nos vales esquecidos dos pastores ignotos
Nos píncaros de gelo dos eremitas perdidos,
Nas ruas transversais dos bairros afastados das cidades,
A paz que é dos que não conhecem e esquecem sem querer.
Materna paz que adormeça a terra,
Dormente à lareira sem filosofias,
Memória dos contos de fadas sem a vida lá fora,
A canção do berço revivida através do menino sem futuro,
O calor, a ama, o menino,
O menino que se vai deitar
E o sentido inútil da vida,
O coveiro antigo das coisas,
A dor sem fundo da terra, dos homens, dos destinos
Do mundo...

s.d.



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993