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07 outubro 2014

henri michaux / rasuradores




Chicotes de fogo, de escavação, de fel
chicote sobre os bens e os males
sobre as ordens e os olhos
sobre as mãos que seguram o cabo

Brasa sobre a camisa do Rei
brasa sobre a boca do padre

Estalo vibrando sobre os mil espelhos
estalo vibrando nos charcos de laca

Matraca na Musa
matraca no coração dos anjos
grasnidos sobre as assembleias

Verrugas para cima das doutrinas
tripas para cima das doutrinas
escarros para cima das doutrinas

Rolha sobre a voz anónima
sobre o inchar da voz anónima
sobre os moinhos que fabricam estrelas

Chagas no aço
chagas nas estruturas
chagas nos planos de futuro

Rasurar

os irmãos e os pais
e os novos pais disfarçados de filhos

a espécie de paz
que faz as almas esquartejadas

as ruas que espiam
as categorias que aplaudem

as vozes de veludo
os enxuga-misérias
a prepararem já uma miséria ainda mais nojenta

as vozes de comando da momentânea ciência
os liquidadores de Edipo

os discípulos, os discípulos de discípulos
escravos-natos sôfregos da posse de outros escravos

Rasura das feições do rosto
do cunho do objecto
do vestígio do facto

dos inumeráveis inimigos nunca assaz vomitados
tábua rasa não uma vez mas mil vezes a repetir

da origem
dos desenvolvimentos
do que prolifera
a aplacação da ira, peixe piloto da próxima renegação

de si mesmo
de ti
do eixo

rasura
rasura
rasura

Catedrais do transe
da raiva

do esterco
do abcesso
da injúria
da chaga lá de dentro
do ofídio traidor que folga quando a flecha parte

do submarino que vai ao fundo asfixiado
do rato arsenificado
do pénis queimado
do anzol na aorta

espinhosas
verruguentas
apofisadas
amorfas
polimorfas
doidas
arrebatadas
inflamadas
Catedrais não benzidas não curtidas em banha

do absurdo
da exasperação
do sofrimento
da fome que há na fera
da sede no traído
da superação impossível
do ranger de dentes
do grito
do grito
do grito
catedrais, quando vos veremos nós?

Por fim edificadas
por fim à imagem da nossa desmesurada medida
dominando vertiginosamente metrópoles e aldeias
unidos, nós e elas, apesar da sua massa e dureza
como irmãos gémeos colados pela boca
pela raiva, pelos rins, pelo ânus
pela abjecção comum impossível de esquecer
por tudo o que é falhado implacavelmente desde o
                                                                  princípio

pela desgraça de posição
por toda a velha cola reumatismal
pela nova instalação que fere mais
ainda mais deformadora
pela todavia inextinguível tendência para sublimar

catedrais
monstruosamente escoradas ao rosto do céu
nossas catedrais
quando vos veremos nós?


henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999



02 março 2014

henri michaux / o pássaro que se apaga




É durante o dia que ele aparece, no dia mais branco.
Pássaro.

Bate as asas, voa.
Bate as asas, apaga-se.

Bate as asas, ressurge.

Pousa. E depois desaparece. Com um bater de asas
apagou-se no espaço branco.

É assim que se comporta o meu pássaro familiar,
o pássaro que vem povoar o céu
do meu pequeno pátio. Povoar?
Bem se vê de que maneira...

Mas permaneço quieto, a contemplá-lo,
fascinado pela sua aparição,
fascinado pela sua desaparição.



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



19 agosto 2013

henri michaux / encontro na floresta



Ele começa a espiá-la através dos ramos.
Cheirula-a de longe, sacabéstia que é, nescional.
Ela: uma loira distraída um pouco sensaborida.

Aquilo coiceja-o, põe-o logo a babamar-se
Sacode-o todinho, por baixo, por cima, a tresfolegar.
Solusufoca. Não aguenta mais.

Aproxima-se pois à relucapa,
arraganha-a, e com violência e terror a derriba
no chão de folhas frias da floresta muda.

Dessaia-a; e já à vontade merexe-lhe,
apalpilha-a, enodoa-a e morteia-a
(tesa-lhe as unhas na varte, que martira).

Ébrio de imundo, doido pelo corpo doce,
sobre ele se zantira e o tramata.
Transpirando desvairado em grunhal derronco
— ronca! e treguincho —
ranhodeia-a e enrulha-a,
besbesunta-a, mordalha-a, reconcobrea-a e ferina-a.
E por fim, triunfante, enceleira-a!
Imensa cuba de um instante!
Floresta, mulher, terra, céu animal dos recônditos!
Beatamente ele lamafurda.

Ela ergue-se, esgazeada. Sórdido sonho, bem pior que
                                                           um sonho!
«Já passou, não tenha medo, sumiu-se já o vagabundo...
e leve como uma pena, minha senhora.»



henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999



08 maio 2013

henri michaux / conselhos


  
Casanova, no seu exílio, dizia a quem quisesse
ouvi-lo: «Eu sou Casanova,
o falso Casanova.»
Tal como eu, Senhores… como decerto se ouve
por aí.
Mastiguem bem os vossos alimentos
antes de morrer,
Mastiguem-nos bem: um, dois, três!
Triste figura é a do diabo,
Triste figura a de quem vos ouve.
Para o canil! Para o canil! e para sempre,
Apoie-se no meu ombro, meu filho,
Apoie-se na minha idade e na minha experiência
Apoie-se na minha religião e na minha dependência,
Apoie-se bem antes de se encontrar bem,
Apoie-se em sonhos e sem o mostrar a ninguém,
Com a mão nas costas, e as costas na mão,
Apoie-se cão no canil,
Caroço no fruto, homem no seu nada.



henri michaux
as minhas propriedades
trad. josé carlos gonzález
fenda
1998


03 setembro 2012

henri michaux / leitura





Os livros são chatos de ler. Não há neles livre circulação. Somos convidados a seguir. O caminho está traçado, único.
Muito diferente é o quadro: imediato, total. À esquerda, também à direita, em profundidade, sem peias.
Nele não há um trajecto, há mil trajectos, e as pausas não são indicadas. Mal a gente o deseje, de novo o quadro todo, por inteiro. Num instante está ali tudo. Tudo, mas nada ainda é conhecido. É aqui que se deve começar a LER.

1950




henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999




21 agosto 2012

henri michaux / paisagens


  


Paisagens tranquilas ou desoladas.
Paisagens da estrada da vida mais do que da superfície da
Terra.

Paisagens do Tempo que se escoa lentamente, quase imó-
vel e às vezes como que de marcha atrás.

Paisagens de retalhos, de nervos lacerados, de «sauda-
des».

Paisagens para tapar as feridas, o aço, o estoiro, o mal, a
época, a corda ao pescoço, a mobilização.

Paisagens para abolir os gritos.
Paisagens como um lençol puxado até à cabeça.





henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



19 junho 2012

henri michaux / venham, mais uma vez


  


Venham, mais uma vez,
venham cá, palavras miseráveis
para exprimir coisa mais miserável ainda
para exprimir o caído, o devastado, o irreconhecível
o três vezes mais temível que na sombra se prepara

Para exprimir os montes de vergonha de súbito surgidos
a tapar os horizontes
a gaiola em todo o lado, para exprimir Judas,
Para exprimir Judas multiplicado, Judas faz companhia
os dinheiros não levam muito tempo para se porem
                                                a correr atrás dos Judas


Para exprimir, as folhas caem
as frontes estalam
apagam-se as gares
estancam os caminhos
o inverno desanca à chicotada o amplo rebanho

Para exprimir braços, estômagos, julgamentos no
                                                                  garrote
e milhões vezes milhões de homens inteiros no garrote
e milhões e milhões corroídos na chaga
da chaga, na chaga da queda
ou detidos, silenciosos, contemplando a desfeita coluna
                                                  vertebral do seu futuro

Contemplando sobretudo a Estátua alta que na derrota
                                                                        dos seus
se desmoronou no pedestal
os seus destroços doem. Os seus destroços torturam.
Somos perseguidos pelos seus destroços.
A noite chega. Afastam-se os ecos. Aumenta o frio.
Um grande corpo com garras, pesando com todo o
                  seu peso, sobre o corpo está estendido.




henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999





10 dezembro 2011

henri michaux / náusea ou é a morte que se aproxima?




27 de abril


Rende-te, coração.
Lutámos tempo de mais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.

Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.

Eu, por mim, não posso mais.

Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que antes de
saltar a barreira já vos grita o seu nome,

Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o, peço-vos.



  

henri michaux
equador
trad. de ernesto sampaio
fenda
1999



29 setembro 2009

henri michaux / mais um infeliz






Ele morava na rua de Saint Sulpice. Mas deixou a casa.
«Perto demais do Sena, disse ele, e um passo em falso dá-se num repente».
Foi-se embora.

Pouca gente pensa no facto de a água existir;
água profunda, e por toda a parte.
Os rios dos Alpes não são tão profundos,
mas são extremamente rápidos (o que vem dar ao mesmo).
A água é sempre a mais forte,
seja lá qual for a maneira como se apresente.
E como se encontra por todos lados, em quase todas as estradas...
bem pode haver pontes e mais pontes — basta faltar uma
e a pessoa afoga-se, tão certo como antes de haver pontes.

«Tome Hemostil, dizia o médico,
isso é do sangue.»
«Tome Antastene, dizia o médico,
isso é dos nervos.»
«Tome bals dizia o médico,
isso é da bexiga.»

Oh! a água,
toda essa água pelo mundo fora!








henri michaux
as minhas propriedades
trad. josé carlos gonzález
fenda
1998


28 fevereiro 2009

henri michaux / voltar





Hesitei em voltar a casa dos meus pais. Como é que eles fazem quando chove? pensei eu. Depois lembrei-me que havia um tecto no meu quarto. «Não importa!» e, desconfiado, não quis voltar.
É em vão que agora me chamam. Assobiam, assobiam na noite. Mas é em vão que utilizam o silêncio da noite para chegar até mim. É absolutamente em vão.







henri michaux
la nuit remue (1935)
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



15 agosto 2008

henri michaux / ideogramas na china


(…)

De uma certa maneira semelhante à água, ao que ela tem de mais forte e de mais leve, de menos perceptível, como o são as rugas da sua ondulação, que sempre foram um tema de estudo na China.

Imagem do desprendimento: a água que não se apega a nada, sempre pronta a instantaneamente voltar a partir, água que, mesmo antes da chegada do budismo, falava ao coração do chinês. Água, vazia de forma.






Yi Tin, Yi Yiang, tche wei Tao
Um tempo Yin, um tempo Yang
Eis a via, eis o Tao.







Via para a escrita.


Ser calígrafo, como se é paisagista. Melhor. Na China, é o calígrafo que é o sal da terra.

(…)







henri michaux
ideogramas na china
trad. ernesto sampaio
cotovia / fundação oriente
1999


11 julho 2008

je vous écris d´un pays lointain




5

Escrevo-lhe do fim do mundo. É preciso que o saiba. Amiúde as árvores tremem. Apanham-se as folhas. Têm uma imensa quantidade de nervuras. Mas de que servem? Não há mais nada entre elas e a árvore, e dispersamo-nos, incomodados.
Será que a vida na terra não poderia prosseguir sem vento? Ou será preciso que tudo trema sempre, sempre?
Há também tumultos subterrâneos, e dentro de casa, como raivas que surgissem à nossa frente, como seres severos que quisessem arrancar confissões.
Não se vê nada, como se importasse muito pouco ver. Nada, e todavia treme-se. Porquê?








henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999






11 março 2008

tranches de savoir



*

Não se vêem vírgulas entre as casas, o que torna tão difícil a sua leitura e as ruas tão cansativas de percorrer.
A frase nas cidades é interminável. Mas fascina, e os campos são abandonados pelos trabalhadores outrora corajosos que agora querem inteirar-se por si próprios do texto admiravelmente retorcido, de que toda a gente fala, tão difícil de seguir, não raro impossível.
Embora tentem fazê-lo, esses trabalhadores opiniosos, andando sem cessar, lambem à passagem as doenças dos esgotos e a lepra das fachadas, mais do que o sentido que continua oculto. Drogados de miséria e de fadiga, deambulam em frente das montras, desviando-se por vezes do seu intuito, a sua busca nunca… e assim se perdem os nossos bons campos.







henri michaux
(fatias de sabedoria, 1950)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999


18 janeiro 2005

book zapping #004 henri michaux


(...)

Mais tarde, procurados em todos os pon-
tos do Império do Meio, os caracteres de
outrora, cuidadosamente reunidos, recopia-
dos, foram interpretados pelos letrados.
Surgia um inventário, um dicionário dos si-
nais de origem.

Recuperados!
e recuperava-se ao mesmo tempo a emoção
das calmas e serenas e ternas primeiras cali-
grafias.

Os caracteres ressuscitados na sua inten-
ção primeira reviviam.


A essa luz qualquer página escrita, qual-
quer superfície coberta de caracteres, torna-
-se fervilhante e transbordante... cheia de
coisas, de vidas, de tudo o que há no mun-
do... no mundo da China


cheia de luas, cheia de corações, cheia de
portas
cheia de homens que se inclinam
que se retiram, que se querem mal, que fazem
a paz
cheia de obstáculos
cheia de mãos direitas, de mãos esquerdas
de mãos que se apertam, que se respondem,
que se ligam para sempre
cheia de mãos frente a frente,
de mãos na defensiva, de mãos ocupadas
cheia de manhãs
cheia de portas
cheia de água caindo gota a gota das nuvens
cheia de barcas que atravessam de uma mar-
gem à outra
cheia de aterros
cheia de forjas
e d’arcos e de fugitivos
e cheia de calamidades
e cheia de ladrões levando debaixo do braço
os objectos roubados
e cheia de cobiças
e cheia de nuvens
e cheia também de palavras sinceras
e cheia de reuniões
e cheia de crianças que nascem penteadas
e cheia de buracos na terra
e de umbigos no corpo
e cheia de crâneos
e cheia de fossas
e cheia de aves migratórias,
e cheia de recém-nascidos — quantos re-
cém-nascidos! —
e cheia de metais nas profundezas do solo
e cheia de terras virgens
e de vapores que sobem dos prados e dos
pântanos
e cheia de dragões
cheia de demónios que vagueiam pelos
campos
e cheia de tudo o que existe no universo
tal qual ou disposto de outra maneira
escolhido de propósito pelo inventor de si-
nais para estar junto
cenas para fazer pensar
cenas de toda a espécie
cenas para oferecer um sentido, para ofere-
cer vários,
para propô-los ao espírito
para deixá-los emanar
grupos para resultar em ideias
ou para se resolver em poesia.



Ideogramas na China
Henri Michaux
Trad. Ernesto Sampaio
Cotovia / Fundação Oriente
1999