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24 agosto 2016

frederico pedreira / presa comum



1.
Queimei os dedos todos na
volta de uma ou outra memória,
vasculhando num livro escuro
a voz que me prometera.
Já tu, que tanto disseste, não foste
sequer uma segunda educação.

O espelho da casa, de que levaste metade:
Copiou-me todos os gestos, segredos.
Escrevo, tristeza e papel quadriculado.
Se levantar os olhos, terei
a sombra corcunda, as orelhas de burro:
nunca verás palácios nos sulcos da parede.
Vira a página, faz um verso igual ao outro.
Entende: não há cura para este consolo.

2.
Tento subtrair-me ao frio
dos dias, pequenos golpes
impronunciáveis, outrora
carícias, coisas antigas.

Pondero a misteriosa
engrenagem de tudo
o que sempre pareceu
estanque na alvorada:

o nevoeiro com o seu riso,
o copo num soluço de pó,
deixado à cabeceira, o meu
corpo apagado a um canto.

3.
Uma manhã de Outono.
Donzel, peço-te: veste o fato,
a camisa gasta no colarinho,
calças demasiado largas,
depois os sapatos descosidos.

A casa sossegada
sempre que não estás aqui.
Em cima da cómoda, os frascos
dos comprimidos, alguns abertos.
Evita arreganhar os dentes:
este dia não tem um começo real.

O que poderá acontecer hoje
que faça de ti uma coisa diferente?
Estarás sozinho quando mais logo
o fogo voltar a falar em casa.

Espero que caias de borco,
que lamentes tudo o que
ouviste dos outros passageiros,
dos tolos de luz, dos que
nunca mais tropeçam na armadilha.
Que faças essa cinza a tua ceia.

E de seguida cospe, cospe inteiro –
como um cão invariável, faminto.


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voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015