Mostrar mensagens com a etiqueta eugénio de andrade. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta eugénio de andrade. Mostrar todas as mensagens

21 julho 2019

eugénio de andrade / ao luís miguel nava, noutra estrela




Dizem que foste tu
a escolher a violência
da tua morte, num acorde perfeito
com os teus versos. Não é verdade:
tu sabias que nenhum inferno
é pessoal, por isso procuravas
um rio onde ardesses
para voltares a nascer longe da terra.
Apenas isso – o resto é merda.




eugénio de andrade
relâmpago nº. 15 10-2004
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2004





17 junho 2019

eugénio de andrade / sobre a casa



Não há senão a casa viva do olhar
à beira do crepúsculo
não há senão
a vereda quase triste das palavras.



eugénio de andrade
véspera da água
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







16 março 2019

eugénio de andrade / matéria solar


  
39

Nesses lugares,
nesses lugares onde o ar
perde a mão,
os meus amigos começam a morrer.

Falar tornou-se insuportável.
Falar dessa luz queimada.
Deserta.

Que fazer desta boca,
do olhar,
tão perto outrora de ser música?



eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






30 dezembro 2018

eugénio de andrade / ainda sobre a pureza




                Não gostaria de insistir, mas a beleza dos jovens que se amam é melancólica. Eles não sabem ainda que o desejo da morte é o mais perverso, que só uma coisa os tornaria puros: roubar o fogo e incendiar a cidade.



eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000














08 dezembro 2018

eugénio de andrade / branco no branco




XLIX

As casas entram pela água,
a porta do pátio aberta à estrela
matutina, em flor
os espinheiros,

nas janelas apenas a cintilação
juvenil do mar antigo,
esse que viu ainda as naves
do mais errante de quantos marinheiros

perderam norte e razão
a contemplar a reflectida estrela
da manhã:
só na morte não somos estrangeiros.




eugénio de andrade
branco no branco
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






26 outubro 2018

eugénio de andrade / eros




Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
– como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?



eugénio de andrade
mar de setembro
poesia
fundação eugénio de andrade
2000









17 agosto 2018

eugénio de andrade / sul




Podia ser do feno, ou dos limoeiros, mas não: era da juventude, aquele aroma. Atravessa o pátio, entra pela varanda. Tenho que defender-me desta lâmina aguda. Sobre a garganta.



eugénio de andrade
memória doutro rio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000












24 junho 2018

eugénio de andrade / matéria solar


  

36

Pela manhã de junho é que eu iria
pela última vez.
Iria sem saber onde a estrada leva.

E a sede.




eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000










09 junho 2018

eugénio de andrade / os joelhos




Considerai os joelhos com doçura:
Vereis a noite arder mas não queimar
A boca onde beijo a beijo foi acesa.



eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000












29 maio 2018

eugénio de andrade / arte de navegar




Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.




eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000









26 abril 2018

eugénio de andrade / rotina




Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.





eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000








24 março 2018

eugénio de andrade / foz do douro




É outra vez abril
– e tão perfeito é o azul
que o estendo
ao longo do meu corpo.
Não sei de ninguém tão bem vestido!




eugénio de andrade
escrita da terra
poesia
fundação eugénio de andrade
2000














10 março 2018

eugénio de andrade / vozes




Às vezes rompe pela casa,
pousa no silêncio,
no pulsar do silêncio.
Que faz ainda
por aqui? Coração de lume
velho – é um dizer.
Por fim corre
para o pátio de outros dias,
junta-se às vozes infantis.
E cantam, cantam,
matutinas.



eugénio de andrade
ofício de paciência
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







02 fevereiro 2018

eugénio de andrade / o anjo de pedra





Tinha os olhos abertos, mas não via.
O corpo todo era saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de maio e claridade.

Parava o seu gesto onde pára tudo:
no mistério das coisas por saber;
e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser


eugénio de andrade
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






18 outubro 2017

eugénio de andrade / antes da neve



As grandes searas
sacudirão a crina,
a luz de setembro
tombará dos olmos,
a espuma do vinho
extinguir-se-á
como lume breve –


só então a neve…



eugénio de andrade
ostinato rigore 1963-1965
poemas
edit. inova
1971






24 junho 2017

eugénio de andrade / estribilhos de um dia de verão



1.
Um nó de luz ou uma lágrima
nada mais era quando despertava.

2.
Sabor de água, puro sabor
de ser matinal até doer.

3.
Sabor de ser
ardor de florir
rumor de amanhecer.

4.
Ser
de neve ao fogo um só ardor.

5.
Um só fluir, um só fulgor.




eugénio de andrade
ostinato rigore 1963-1965
poemas
edit. inova
1971





18 maio 2017

eugénio de andrade / coração habitado




Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de Deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhe toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.



eugénio de andrade
até ananhã 1951-1956
poemas
edit. inova
1971






08 abril 2017

eugénio de andrade / juventude



Sim, eu conheço, eu amo ainda
esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca! Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.


eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




13 março 2017

eugénio de andrade / canção infantil



Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.




eugénio de andrade





14 fevereiro 2017

eugénio de andrade / frente a frente



Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
– e é tão pouco!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971