30 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de inverno

a imagem do inverno


cruzei-me contigo ontem no denso granizo da noite, a dureza do dia transformou secamente o rosto gasto dos silêncios das sombras. lembra-me o teu nome invernoso, negro e pesado, o vicio onde transformei as mãos amarelecidas e secas de tanto fomentar. não grites, já não te ouço, a tua voz é um eco delicioso eterno no silêncio das noites misturadas, a solidão é cega e fria.

falta-me o túnel do sono invencível. entras na companhia do vento inconcusso, um vento indiferente. os dias chegam ausentes, agasalhados nas asas de nuvens cinzentas, desarrumadas de imagens, ninguém corrompeu o sentimento do teu tempo e tu voltas sempre no mesmo dia à mesma hora.

guardo a imagem do sonho turbulento. o sonho que parece ser real, o ranger das portadas de madeira, o fragor dos vidros, onde escuto o crescer da maré, dobrado no arrepio ameaçador do inverno. a insistência em ficares envolvido nos tons cinzentos de olhar ameaçador, afogado nas águas estagnadas. guardo a solidão dos dias que trazes, sem tons, indecisos e repisados.

empurra-me deste frio que desanima e arrefece o corpo, deste inverno que me cansa.



l. maltez

27 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de inverno

será esse o teu inverno
nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.

foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.
será esse o teu inverno.
gil t. sousa

20 dezembro 2004

há coisas em que não vale a pena ser original...

Brinquedos



Nós, que somos espantosamente grandes,
que já não deslizámos pelo gelo desde as duas guerras,
Ou se o fizemos alguma vez, sem querer
Já nos fracturámos um ano,
Um dos nossos importantes e duros anos
De gesso...
Oh, nós, os espantosamente grandes
Sentimos por vezes
Que nos faltam os brinquedos.

Temos tudo o que necessitamos,
Mas faltam-nos os brinquedos.
Temos saudades do optimismo
Do coração de algodão das bonecas
E da nossa nau
Com três fieiras de velas,
Que tanto sulcava as águas
Como a terra firme.

Gostaríamos de montar um cavalo de madeira
E que o cavalo relinchasse ao mesmo tempo que a madeira
E que nós lhe disséssemos: 'Leva-nos a algum sítio
Não importa qual,
Porque em qualquer sítio da vida
Propomo-nos levar a cabo
Formidáveis façanhas'.

Oh, quanta falta, por vezes, nos fazem os brinquedos!
Mas nem sequer podemos estar tristes
Por essa razão,
E chorar com toda a alma,
Agarrando a perna da cadeira
Porque somos tão adultos
Que não há ninguém mais velho que nós
Para nos acariciar.




Marin Sorescu,
de "Simetria"
Tradução colectiva
Poetas em Mateus, Quetzal




15 dezembro 2004

um poema de: Pere Gimferrer




Associo a chuva aos mortos


Associo a chuva aos mortos. Vem muito lenta,
com os nardos e os tubérculos, com o frio dos líros
e os grumos pastosos da terra lavrada,
com as nervuras das folhas, as sombras,
com o voo da codorniz e o grito do mocho.
Pela terra dentro, pelo tempo dentro, no coração
do barro, quem sabe deles? Esperam porque é esse
o ciclo da fecundidade. O machado, enterrado,
brilha com a mais viva prata, com um fogo mineral.
Essa é a lei. A chuva lava os sulcos
de rodas na terra, de tantos carros que passaram,
e passadas de humanos e cavalos. Um bafo cinza e líquido,
uma claridade afogada, como aço escuro e opaco,
sobre a terra empapada. Não ouves estas vozes,
os risos das raparigas num meio-dia de Agosto?
Não vês esta blusa vermelha? Como a raiz,
a mão ainda escava na terra húmida, dedos
como garfos, secos, de árida pele
como papel de embrulho. Não, a chuva não chega
a este reino. Cai muito lentamente, conhece
com profunda piedade o tronco da oliveira
e brune a angulosa aspereza da pedra,
e, na laguna, desbrava as águas pantanosas,
coléricas de fumo, e humedece o covil
da raposa, a lura do coelho e o ninho do rouxinol.
Mas não chega, sob a lama empapada,
sob o terrunho de humildade porosa,
de paciência e de luz, ao mais escuro reino,
ao país de rancor e secura dos mortos,
que ainda alongam mãos hostis, ferruginosas,
dentes carcomidos e sexos erectos e convulsos,
mumificados, e com avidez de unhas e de pó
rasgam a pele. Querem possuir-nos
ou apenas pedem para voltar a ser? Pedem
crispação, tremura e sofrimento?
Pedem acaso a incerteza
diária, sentirem que o desejo os sacode,
a pancada da pânico, a fúria
do domínio, o receio da derrota?
Acaso se atrevem a querer sobreviver?
Como vive a raiz, como vive o tubérculo, como vive
a erva, nunca poderão viver os homens
conciliados com um destino? Não aceitarão o cielo
do tempo fecundo e o do regresso à terra?
Por tanta dor que já passou,
pelo instantâneo ardor de tantos corpos,
por tudo o que esta luz de chuva nos recorda
e este sabor da terra recém-molhada,
pela vibração do ar quando a chuva
parou há instantes e um pássaro ergue o voo
num silêncio claro, e por esta cor
do pássaro, indeciso no azul, que gorgeia
quando o céu é mais nítido, pelo sofrer
que recordamos e pelos amores de antes,
e pela humilhada inocência,
e pelos desejos nunca confessados,
por tudo isso: nunca teremos uma palavra?
A chuva entra nos palheiros das velhas casas de lavoura,
a madeira apodrece, abre sulcos de água na terra arável
e nutre os narcisos. É cor de cinza
e, nos vidros das janelas tem a cor das memórias.
Há apenas um tempo. O tempo do homem
e o tempo do animal e da planta
e o tempo da pedra são um só. Este falcão
que agora, fulminante, cai do alto do céu,
sabe onde vai, como a pedra que no fundo da cisterna
vê o seu destino num relâmpago de águas.
Subitamente o vêem, e os anula,
e os possui, e chegam ao resplendor: atingem
a fulguração do ser. Chegam assim
a ser o que são. Fiéis, silenciosos,
como o chaparral queimado pelo sol, dizem que sim,
sabem que é sim, que esta imagem
— o brilho de uma água morta, ou, ao cair da tarde,
um lugar de sombras no coração do outeiro —
é o que são, chama-os, para morrer ali,
e esta morte será um ter vivido,
não uma interrupção, nem sequer uma espera.
Dizem que sim, sentindo que não é para lamentar
nada, que nada têm a esperar, que nada se mutila
porque já tudo existia antes: Viviam
sempre o tempo do lugar de sombras
e o tempo da água morta no fundo do poço.
Quando passamos, de noite, junto ao rumor
que o vento ergue na folhagem dos choupos,
ou, na iluminada glória do meio-dia solar,
recolhemos, num cacho de uvas, a claridade,
ou semicerramos os postigos — o sol
é um martelo nas ruas desertas — e um corpo
nos fornece um alento cálido de limões,
ou, quando, pela mata, vemos uma pedra vermelha
ou ouvimos um estalar de ramos e de águas
sabemos que tudo será esse único instante?
Acaso esperamos algo mais? Sem memória,
desapossados, o tempo já não nos ofusca
com um espelho sob o sol,
já não nos fere os olhos com luzes de feldspato.
Eu sou o meu ontem e sinto a eminência
do futuro que pulsa em cada gladíolo.
Não nos espia atrás do instante: é o instante.
Não tem o escuro rosto do nosso receio
nem deverá ser-lhe pedida piedade. Não sentíamos,
desde sempre, que o trazíamos connosco? Desejo,
tu, negro escravo com máscara de príncipe,
e tu, princesa branca e cega, paixão
que ris vestida com a claridade dos lírios,
não sentis que o instante é o vosso tempo?
Nada ganhamos, nada perdemos. Os mortos
vivem o tempo eterno e nocturno da névoa,
o instante que é todos os tempos. O tempo
do desejo e da paixão, o tempo de recordar
e o tempo de sonhar. Os vapores da névoa
e uma fumarada como a da lenha verde
informam onde estão os nossos sonhos: longe,
como os relâmpagos numa noite de estio.


Pere Gimferrer
“Quinze poetas catalães”
Ed. Limiar, Porto, 1994
Trad. Egito Gonçalves



10 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de outono

hairy building



a casa


e a casa fecha-se
como uma flor que se gasta

agora
as palavras sobem-na
como raízes
devoradoras
sobre os olhos
entaipados

há esse amor
um vermelho muito alto
tão alto
e a morrer, a morrer
como sangue ao relento
ou livros abandonados
no chão da memória

no desejo

e há um adeus muito triste
um céu antigo
que tudo cobre sem gritar

ternura
é a ternura meu amor
é esta fogueira medonha que se apaga
no coração silencioso
do tempo frio

a casa, amor
o punho fechado do destino
roendo
o que os olhos largaram na rua
o que as mãos pousaram
no coração
para sempre, para sempre, para sempre

gil t sousa