04 junho 2021

claudio rodríguez / ao ruído do douro

 
 
E como eu reparava
que era tão popular pelas ruas
passei a ponte e, adeus, para trás tudo.
Mas até aqui me chega, apaguem-no, estou sempre
a ouvir aquele ruído e subo e subo,
ando de vila em vila, encosto o ouvido
ao voo do pardal, ao sol, ao ar,
eu sei lá, ao céu, ao peito das moças,
e sempre o mesmo som, igual mudança.
Que sítio é este sem trégua? Que hostes, que altas lides
me saqueiam a alma a toda a hora,
rendem a torre da divisa branca,
abrem aquele portilho, o silencioso,
o nunca falso? E és
tu, músico do rio, meu fundo fôlego,
lhaneza e voz e pulsar dos meus homens.
Seria tão melhor
Esperar! Hoje não posso, hoje estou duro
de ouvido, após tantos anos passados
com os de ruim terra. Mas eu voltei.
Campo da verdade, qual a traição?
Vejam como tanto tempo, tanta empresa
Fazem o mesmo ruído!
Vejam só como temos tido sempre
tanta pureza ao nosso lado, em casa,
e continuamos surdos!
Já nem mais uma tarde! Sê bem-vinda,
manhã. Estou pronto: que testemunhem
por mim os que ainda ouvem. Oh, rio,
fundador de cidades,
soando em tudo menos no teu leito,
faz com que o teu ruído seja canto,
seja o nosso trabalho vida afora.
Se um dia a solidão, o ver o homem
na venda, o vinho, o desamor ou o desânimo
assaltam o que bem fizeste teu,
põe-te como hoje em pé de guerra e guarda
todas as minhas portas e janelas
como sempre fizeste,
tu, que oiço agora como ouvia outrora,
tu, rio da minha terra, Duradouro.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




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