26 outubro 2021

daniel faria / e desço à verdura das tuas mãos

 
 
E desço à verdura das tuas mãos
Como as manadas que buscam as minas
 
Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam
Faltam-me no chão duro das promessas
Os joelhos
 
Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesse como
Queria amar-te tanto
 
O que sei da unidade é a túnica
Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro escrito por dentro e por fora
Silêncio escrito por dentro
Palavra escrita a toda a volta da história
 
O que sei do céu
É a mão com que sossegas os ventos
 
Desço à escritura como os veados aos salmos
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
do inesgotável
quasi
2003





 

25 outubro 2021

fernando alves dos santos / uma palavra

 
 
A palavra é a pujante árvore das coisas
qual inverno num pingo de água,
momento temporal num poço muito fundo,
taça de sabedoria
que tudo abrevia.
Beijo de esperança que se empenha na inocência
apenas tentando a inocência das coisas
que permanece sedenta das grandes claridades,
sem tempo e sem modo permanece
na poesia do desejo.
 
Uma gota, uma criança, a forma,
uma ponte entre o futuro e a lembrança.
O grito que congestiona o orgulho dos roteiros
e abre estuários no mundo abundante da seiva
onde a gota nasce e desliza
no calcário do pensamento.
A criança é o centro da multidão que constitui a alma
– à porta das arestas colhendo os frutos,
á porta dos frutos o deserto de uma gota.
E a forma desperta nos meus cabelos brancos,
vinhas que plantei no meio dos torrões da planície
perscrutador e atento
às ciosas palavras das pessoas.
 
Uma palavra estilete coberta de pó,
uma palavra pássaro nas montanhas de ferro
onde envelhecem os seios da pátria,
uma palavra vento possuindo as fragas,
uma palavra mar,
uma palavra agoirenta na concha da mão
quando aí seguramos o pão grosseiro.
Uma palavra da cidade a ferros na prisão
se não solitária na doca
onde fundeamos a nau carregada de tapeçarias.
Uma palavra lírica de ruptura
a dizer de novo as pessoas,
a dizer o chão do sonho novo que pisamos
polifonia dos esporões de basalto
que se expande rebelde.
 
Uma coisa, uma palavra,
quando a noite se situa
sobre os telhados da manhã
e dá alento novo aos nossos lábios
porventura o optimismo das sementes
no ser real da palavra jubilosa
nas frescura da transumância.
 
 
  
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005
 




24 outubro 2021

miguel torga / plateia

 
 
Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
 
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
 
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
 

 
miguel torga
câmara ardente
1962





23 outubro 2021

alberto pimenta / diálogo

  

vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as pessoas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo os navios lá longe, tão pequenos que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as casas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles sinais lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as estrelas no céu escuro, tão peque
nas que parecem um espanto, um sinal
e um provérbio, disse eu.
 
essa mania da contradição ainda te há-de
sair cara, disse o cego, brandindo a bengala.
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990






22 outubro 2021

albano martins / os muros

 



 
Os muros. Todos
os muros. Um
só muro. E toda
a sede. E todo
o sal
do mar
 
 
no peito.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
as vogais aliterantes (1981-1985)
glaciar
2021






21 outubro 2021

adília lopes / body art?

 
 
Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
 
Emagreço 21 Kg
as colegas
da Faculdade de Letras
perguntam-me
se é menino
ou menina
 
No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grávida
o rapaz quer-me
dar o lugar
 
Detesto
o sofrimento
 
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




20 outubro 2021

fernando lemos / espero uma revolução

 
 
Espero uma revolução
para dormir
aguardo êsses dias de glória
para me recusar a tudo
silêncio meu
será de balas
seja noite sejam forradas as noites
de balas
 
quando caírem as grandes bombas incendiárias
farei uma leve mudança na cama
 
quero acordar com os clarões do incêndio
sair para a rua barbeado
de camisa lavada
fazer a pé por cima dos cadáveres
quentes o indiferente percurso
do falso cotidiano
preciso de uma revolução
preciso dormir
preciso não mudar de ideias
 

 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019






19 outubro 2021

josé amaro dionísio / a sombra do sangue

 



 

                                    2
 
                Talvez as folhas não caiam  em
Outubro, visto que não se trata do mal
do vento, mas da ruína da alma.
 
 

 
josé amaro dionísio
eduardo batarda
a sombra do sangue
livro de artistas

europalia 91
1991



18 outubro 2021

joão almeida / céu da boca

 
 
Onde as ondas andam é aqui nos prédios novos
por cima da ressaca dos discos parabólicos e o outono
tão frio pela amanhã, com gavetas
de madeira e lenços de papel pelo chão da cabeça
 
ficamos calados a ver passar a linha de marcação contínua
e agora não me lembro nem do autor nem do poema
nem um verso ficou, tudo triturado
reduzido a mosquitos por cordas.
 
 

joão almeida
canto skin
língua morta
2019






17 outubro 2021

joão barrento / breviário do silêncio

 
 
 
*
O silêncio não é explicável. Não só porque se furta aos princípios de articulação da linguagem, mas também porque ele é, em si e quando irrompe e se demarca do som, uma realidade e uma experiência auto-suficiente e autónoma. Qualquer tentativa de explicação da experiência (não do fenómeno!) do silêncio seria uma contradição. O silêncio propicia, em última análise, o acesso a uma «fala» do mundo e das coisas na sua radicalidade ontológica, sem explicações. É a pura presença.
 
 
 
joão barrento
breviário do silêncio
alambique
2021
 




16 outubro 2021

reinaldo ferreira / da margem esquerda da vida

 
 
Da margem esquerda da vida
Parte uma ponte que vai
Só até meio, perdida
Num halo vago, que atrai.
 
É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
P’ra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade.
 
Da outra margem, direita,
A ponte parte também.
Que sabe se alguém me espreita?
Não a atravessa ninguém.
 
 

reinaldo ferreira
dispersos (Livro IV)
poemas
vega
1998





 

15 outubro 2021

antónio franco alexandre / (envoi)




 

João, em viagem sê discreto.
Esquece as mil e três, as onze mil.
De duas mãos já sentes o excesso;
de escafandro cortês é como ficas
bem, ao cortar o retrato.
 
Não é verdade que este mundo seja
o pior, o melhor; melhor, se é teu.
Se é teu o arremesso, a flecha voa
certeira, à desprendida presa.
 
Verás os montes altos, os eternos,
e o mais pequeno, onde nasce o dia.
Precioso brinquedo, a terra gira
com a precisa alma do relógio;
leva contigo tudo, não me poupes;
onde não sou é que começo, eu.
 
 
 
antónio franco alexandre
poemas
carrocel
assírio & alvim
2021

 


 




14 outubro 2021

amadeu baptista / taxa de juro

 
 
 
Vigio estas ruínas, roubador de secretas implosões
                que tecem os segredos da noite. De longe observo
os que dulcificam e pervertem este rumor nocturno, a visão
incendiária de um lenço suspenso sobre miríades de insectos
                agonizantes. Esses animais empolgam-me, são
insondáveis ruídos dentro da minha boca, o meu sangue perscruta-os,
                excede-os na lucidez da maldição, desejo-lhes
                o visco que soltam na irrealidade da passagem, amo-os
como se fossem voláteis transparências de um universo voraz
que secretamente reúne a profetização e as vítimas
                em torno do abismo. Tudo é sagrado,
a destroçante imagem desses corpos que o esquecimento ilude,
                a fragrância de todas as substâncias lancinantes
que pulsam sob a terra, esse imperceptível murmúrio de escuridão
                que nas têmporas se esconde, consumindo
a imóvel opacidade que percorre a loucura. Com as mãos
                escavo este lugar sagrado de claridade e torpor,
                o deserto imperturbável das órbitas silenciosas
destes mortos, a película de impaciência e luz que os nossos
                dedos tocam,
                devastadoramente.
 

 

amadeu baptista
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991