31 janeiro 2019

julio martínez mesanza / quando regressa maio




Quando regressa Maio esqueço sempre
que o inverno me dizimou a hoste. Sonho
com sangue quando Maio me faz jovem
e não conto com o número de mulas
doentes, nem me lembro dos cavalos
que não suportarão outra campanha.
Sou em Maio o meu ser que não detesto
e não essa tardia sombra que medita.
Não me reconheço em Maio. Multiplico
com energia as ofensas e provoco
ao justo e ao injusto, ao estrangeiro,
ao da terra, ao aliado. Mando cartas
injuriosas para todos os lados,
entusiasmo-me quando me devolvem
a injúria e pronta guerra aceitam.
É melhor em Maio sermos insolentes
do que arrastarmos a fama nos torneios.



julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






30 janeiro 2019

adonis / seis notas do lado do vento




2

                O abismo ensinou-me que não podemos compreender um problema a não ser por intermédio de um outro problema e através dele, como se o homem não avançasse indo do obscuro para a luz, como é hábito pensar, mas dirigindo-se para uma outra espécie de obscuro, menos espesso. Essa diferença entre duas obscuridades, chamamos-lhe luz. Felizmente para o homem e para a poesia, não existe claridade suficiente para apagar o obscuro no homem e nas coisas. Se a claridade se tornasse senhora do mundo, a vida seria alterada, e a poesia desfeita.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016







29 janeiro 2019

yvette centeno / o teu discurso




O que dirias
perante a flor do cacto japonês?
Que é flor
e que o ser flor te perturba
e mais ainda
só floresce uma vez.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998






28 janeiro 2019

jane hirshfield / natureza morta




Fidelidade de um livro
ao seu lugar na estante
numa natureza morta.



É assim
que continuam os velhos amores.




jane hirshfield
trad. francisco josé craveiro de carvalho
eufeme
magazine de poesia
n.º 4 julho/setembro 2017







27 janeiro 2019

francis ponge / doze pequenos escritos




I
Desculpem esta aparência de defeito nas nossas relações. Nunca saberei explicar-me.

Ser-vos-á impossível considerar-me a cada encontro como um bolo? Agora rio-me de falar disto tão a sério, varo Horatio! Tanto pior! Qualquer que seja vinda de mim a palavra guarda-me melhor que o silêncio. A minha cabeça de morto parecerá iludida pela sua expressão. Isso não acontecia a Yorick quando falava.

II
Forçado muitas vezes a fugir pela palavra, que ao menos eu tenha podido por vezes desfigurar um pouco, revirada por um golpe de estilo, essa bela linguagem, para que em suma ela renomeie Ponge segundo Paulhan.



francis ponge
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996






26 janeiro 2019

per aage brandt / o gato agacha-se na gravilha branca



*
o gato agacha-se na gravilha branca e fareja
uma mariposa nocturna porque é noite, e os insectos volteiam
em redor de todas as coisas brancas, como se fossem luzes,
cães e meios de transporte, cantam entre falésias
onde os humanos vivem,
deixamos o espaço às coisas e tapamos com mantas de imagens
os olhos, a noite é mais pesada que os nossos corpos, muito mais
                                                                                          [fria
e muito mais sabedora

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004








25 janeiro 2019

natália correia / o livro dos amantes



II
Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor.
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.




natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







24 janeiro 2019

antónio garcia barreto / guerra colonial




Era verão
As acácias vermelhas suavam
sob o calor do sol
Apenas as sombras
mereciam respeito
– As sombras e a cerveja gelada
Tudo o resto era pó
pó e sede e relinchar
de armas no silêncio
opressivo do planalto
À noite embebedávamos
o medo com cerveja e uísque
para nos vestirmos de heróis
na manhã do dia seguinte
Eu escrevia poemas de amor
que assinava com balas
tracejantes enquanto esperava
que a morte rimasse com sorte
Era verão
As acácias vermelhas suavam
sob o calor do sol
e a morte sorria em cada
trilho da picada




antónio garcia barreto
nervo/4
colectivo de poesia
janeiro/abril 2019







23 janeiro 2019

pedro spigolon / fotografia de uma morte




Um vento salgado roubou
a cor de teus cabelos,
na nuca inventou o inverno
dum parto, partiste
como um navio
sem festim de aceno.
Perseguiste uma ilha qualquer
navegando em meu sangue.
A película imitou teu
instante de inferno.
Tive os olhos incendiados
como quem chora gasolina.


pedro spigolon
espanto
editora medita
2015






22 janeiro 2019

herberto helder / nenhum corpo é como esse




Nenhum corpo é como esse, mergulhador, coroado
de puros volumes de água.
Nenhuma busca tão funda, a tal pressão,
como pesa na água uma ilha fria,
a raiz de uma ilha.
Uns procuram ramas de ouro.
Outros, filões de púrpura unindo
sono a sono. Há quem estenda os dedos para tocar
as queimaduras no escuro. Há quem seja
terrestre.
Tu esbracejas entre sal agudo.
Não falas, mal respiras, moveste apenas
e fulguras
como uma estrela cheia de bolhas.
Feroz, paciente, arremetido, mortal, centrífugo.
Com todo o peso do coração no centro.


*


Nessun corpo è come quello, tuffatore, incoronato
de puri volumi d´acqua.
Nessuna ricerca tanto profonda, a una tale pressione,
quanto pesa nell´axqua un´isola fredda,
la radice di un´isola.
Alcuni cercano ramature d´oro.
Altri, filoni di porpora che uniscono
sonno a sonno. C´è chi stende le dita por toccare
le bruciature nel buio. C´è chi
è terrestre.
Tu dai bracciate tra sale aguzzo.
Non parli, a malapena respiri, ti muovi soltanto
e sfolgori
come una stella piena di bollicine.
Feroce, paziente, lanciato, mortale, centrifugo.
Com tutto il peso del cuore nel centro.



herberto helder
flash
empira
roma
1987







21 janeiro 2019

e e cummings / xix poemas




[viii]

algures aonde eu nunca viajei, alegremente além de
qualquer experiência, os teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frouxo há coisas que me prendem,
ou que eu não posso tocar tão próximas que estão

o teu infinito olhar há-de facilmente desprender-me
embora eu me tenha cerrado como dedos,
tu sempre me abres pétala a pétala como abre a Primavera
(tocando hábil, misteriosamente) primeira rosa

mas se teu desejo for encerrar-me, eu e
minha vida fecharemos em beleza, de repente,
como quando o coração desta flor imagina
a neve em tudo cuidadosa descendo;

nada do que existe para ser sentido neste mundo iguala
o poder da tua extrema fragilidade: cuja textura
me submete com a cor dos seus domínios,
representando a morte e para sempre em cada alento

(eu não sei o que é que há em ti que fecha
e abre, apenas alguma coisa em mim entende
a voz dos teus olhos mais profundos que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem tão finas mãos





e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998







20 janeiro 2019

sebastião alba / domingo




É um céu azul
de nenhuma espessura
arqueado sem detalhe
ou outra palavra

Entre as colinas e as praias
nunca miniaturas de palmeiras
mobilaram assim
os olhos das mulheres.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981







19 janeiro 2019

josé pascoal / a curva perigosa




Às vezes curvo-me
Como uma árvore ao vento
E falo às minhas próprias raízes,
E então choro e chupo o sangue
E a seiva
Como se estivesse feliz
E a felicidade fosse a doçura
De te sentir presente
Mesmo que à impossível distância
Da tua ausência.



josé pascoal
antídotos
editorial minerva
2018