25 setembro 2015

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral



VI

As palavras pouco importam: um murro
no estômago, uma vez, alguns pontapés,
chumbo na escola a português, pra mais depressa ver
como se trama a vida, silenciosamente.
Quando se canta é diferente, a voz
pode quebrar-se contra o corpo, e quebra
alguma coisa por detrás da boca
como uma mão mirambolante e escura
que se viesse, dentro, na explosão
de pedaços de carne incandescente.
Acontece também cantar calado, ou com a boca
fundida nos lençóis, pra me esquecer de quem
agora me cavalga por um jantar no poço,
passeio de automóvel, duche morno,
e depois as moedas que se deixam
caídas no passeio como estrelas.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio&alvim
1999



24 setembro 2015

antónio dacosta / venho do mar



Venho do mar
Venho dos montes
Sê amiga do meu repouso

Se apeteço ser rei
Ter um barco e um cão
E dos meus amigos ser amigo

Sê benigna
Se me amas



antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



23 setembro 2015

andre breton / no teu lugar desconfiaria



No teu lugar desconfiaria do cavaleiro de palha
Essa espécie de Rogério libertando Angélica
Leitmotiv aqui das bocas do metro
Dispostas em fila nos teus cabelos
É uma encantadora alucinação liliputiana
Mas o cavaleiro de palha o cavaleiro de palha
Põe-te à garupa e ambos vos lançais na alta alameda de álamos
Cujas primeiras folhas perdidas põem manteiga nas rosas bocados de pão do ar
Adoro essas folhas tanto como
O que há de mais independente em ti
A sua pálida balança
De contar violetas
Apenas o necessário para transparecer nos mais ternos sulcos do teu corpo
A mensagem indecifrável capital
De uma garrafa há muito tempo no mar
E adoro-as quando se junta como um galo branco
Furioso na escadaria do castelo da violência
À luz dilacerante onde não se trata já de viver
Na clareira encantada
Com o caçador a apontar uma espingarda de culatra de faisão
Essas folhas que são a moeda de Danaé
Quando é possível chegar-me a ti até deixar de te ver
Estreitar em ti esse lugar amarelo devastado
O mais resplandecente do teu olho
Onde as árvores voam
Onde os prédios começam a ser sacudidos por uma alegria de mau porte
Onde os jogos do circo prosseguem na rua com um luxo desenfreado
Sobreviver
Do mais longínquo desprendem-se duas ou três silhuetas
Sobre o pequeno grupo ondula a bandeira parlamentar.


andre breton
l´air de l´eau (1934)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994



22 setembro 2015

amadeu baptista / o centro do mundo


7

Muito em breve irei pertencer a outra dimensão da terra.
Eu espero todos os continentes e todos os glaciares,
aguardo inequivocamente todos os céus onde hei-de
     encontrar
a impaciência do homem na solidão do mundo.
De novo anseio palavras elementares para descrever a viagem.
Todas as palavras que alguma vez usei são escassas
após o regresso para nova partida.
Procuro agora palavras cortantes como uma lâmina, inquietas
como uma ave, secretas como o olhar
de quem me julga e condena.



amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999



21 setembro 2015

alexandre o'neill / o café




                É difícil respeitar os mortos quando eles estão, positivamente, à mão de… semear. Como este.
                Vamos olhando para ele de soslaio e falamos baixo. Ora! O que temos é medo do dizque-dizque da vizinhança, ou não fôssemos uma decorosa família.
                A mãe está na cozinha, a fazer café. Cantarola, mãe, cantarola! Manda a vizinhança meter-se na vida dos outros (somos quatro inquilinos por piso, que diabo!). Cantarola, mãe, cantarola – que é o teu primeiro café de mulher livre!
                A mãe não cantarola, antes soluça. De espaço a espaço, um ganido discreto – mas o café está excelente, está forte, está CAFÉ! Pela primeira vez bebe-se café nesta casa!
                Mãe! Não era ele que estava sempre a dizer que o café o matava?


alexandre o’neill
as andorinhas não têm restaurante
publicações dom quixote
1970



20 setembro 2015

álvaro de campos / de la musique



Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas, 
A figura dela emerge e eu deixo de pensar... 
Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo... 

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago.... 

... As duas figuras sonhadas, 
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha, 
E uma suposição de outra coisa, 
E o resultado de existir... 

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras 
Na clareira ao pé do lago? 
( ... Mas se não existem?...) 
... Na clareira ao pé do lago?...

  

álvaro de campos




19 setembro 2015

alejandra pizarnik / anéis de cinza



                             a cristina campo


São as minhas vozes cantando
para que não cantem eles,
os amordaçados tristemente na aurora
os vestidos de pássaro desolado na chuva.

Há, na espera,
um rumor de lilás rompendo-se.
E há, quando vem o dia,
uma partição do sol em pequenos sóis negros.
E quando é de noite, sempre,
uma tribo de palavras mutiladas
procura asilo na minha garganta
para que não cantem eles,
os funestos, os donos do silêncio.



alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002



18 setembro 2015

alberto pimenta / elogio do kitch



nada é diferente do que é:
nem as coisas
nem as palavras.

tudo é como é: tanto
as coisas como
as palavras.

mesmo
quando se trata de
coisas
que encobrem as palavras
ou de
palavras
que encobrem as coisas.

porque
as coisas
são como são
e exactamente o mesmo
sucede com as palavras.

isto
não esquecendo
que as palavras
por assim dizer
são o esmegma das coisas
e as coisas
por assim dizer
o eclegma das palavras.

e é tudo,
não é verdade?



alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990



17 setembro 2015

albano martins / simulacro



Um gesto pode ser
um simulacro apenas.
Como quando arrefece
e acendes a lareira
para dar sangue às brasas.
No halo
da chama há sempre
uma voz que cintila
e te agradece.
É isso que se chama
dar voz ao silêncio.



albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



16 setembro 2015

umberto saba / ulisses



Na minha juventude naveguei
ao longo das costas da Dalmácia. À flor das ondas
cobertas de algas, viscosas, belas
como esmeraldas ao sol, emergiam ilhotas,
onde raramente um pássaro pousava
à espreita da presa. Quando a maré
alta e a noite as submergiam, velas
a sotavento guinavam mais ao largo,
para escapar à cilada. Hoje o meu reino
é essa terra de ninguém. O porto
acende as suas luzes para outros; a mim
impele-me ainda para o largo o espírito indomável
e o doloroso amor da vida.




umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992




15 setembro 2015

raffaele carrieri / piedade corações duros



Piedade, piedade corações duros
Piedade para o pássaro migrador
Que perdeu uma asa em pleno voo.
Piedade para o cigano órfão
Que jogou às cartas
Sela e cavalo
E se suicidou na prisão.
Piedade para o jovem Ninguém
Morto na China
Ou em outro qualquer lugar
Clima raça condição.
Piedade para o que morre de pé
No seu quarto de aluguer.
Piedade para o que cai
Piedade para o que se deixa cair.
Piedade, piedade corações duros
Vós que estais sempre sentados
E sabeis pelos jornais
A morte dos outros.


raffaele carrieri
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992



14 setembro 2015

eva christina zeller / sonho



Ardem os campos
o lago bebe brasas
chove cinza na aldeia
sem estrelas a noite dilui-se
nenhuma pedra fala
em silêncio levanta-se o vento

escapei
recordo que esqueci


eva christina zeller
sigo a água
trad. Maria teresa dias furtado
relógio d´água
1996




12 setembro 2015

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno



11

é altura de perguntar se estamos no inferno, se nada é possível,
se uma pequena letra confunde as estações e os abismos,
se acordo de um sonho em trânsito directo para o pesadelo.
Veja: basta dizê-lo. É muito fácil
acreditar em mim, como se fora um marco telegráfico
que o vento oscila, e corre por dentro
atravessado de vozes, obscuro como um rio transparente,
misturando, no fundo, nuvens, pássaros, limos.

Tudo o leva a crer: o silvo automóvel de ninguém na névoa,
as promessas quebradas, mãos de gesso segurando os patins e o lanche frio
                                                                                                                       [ véspera,
o desarnor tão rápido, e as máquinas onde os dedos repetidos batem
na produção de parafusos. Ou palavras com ar de parafusos,
metálicas, brilhantes, úteis perfeitamente
indispensáveis às comunidades e seus cinco mil intérpretes.
E ao fim da tarde todos se deitam nos tapetes húmidos de pó eterno
e oram ao deus da morte enquanto passam as notícias.

E eu impassível descendente de obscuros francos valencins
que faço inverno dentro no banquete, relógio
incerto a dar as horas quando chega ao fim? O meu inferno
é de onze meses, basta. Quero acordar de mim,
ser de repente o bosque posto em orla
da lisa pista fria. E que surpresa, a mão hábil do vento,
a máscara de nuvens presa rente! nem sei em que ficamos:



antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996