25 fevereiro 2007

a espuma dos dias


(…)

— De facto não me interessa muito — disse o gato.
— Fazes mal — respondeu a ratinha. — Ainda sou nova e até há pouco bem alimentada.
— Também eu ando bem alimentado — disse o gato — e não sinto nenhuma vontade de me suicidar. Estás pois a ver por que razão acho isso anormal.
— É porque não viste — acrescentou a ratinha.
— O que é que isso tem? — perguntou o gato.
Não tinha grande necessidade de sabê-lo. Havia calor e os seus pêlos revelavam a maior elasticidade.
— Fica à beira da água — disse a ratinha — espera a hora, anda pela prancha e pára ao meio. Vê qualquer coisa.
— Não pode ver grande coisa — respondeu o gato. — Talvez um nenúfar.
— Sim — disse a ratinha, — Espera que ele suba para o matar.
— É idiota. Não tem qualquer interesse.
— Depois de passar a hora — continuou a ratinha — volta à margem e olha para a fotografia.
— Nunca come? — perguntou o gato.
— Nunca — disse a ratinha. — Está a ficar muito fraco e eu não posso suportar uma coisa dessas. Um destes dias vai dar um passo em falso, quando passar por cima daquela grande prancha.
— E que mal isso te faz? perguntou o gato. — Sentir-se-á infeliz, por acaso?
— Não se sente infeliz — respondeu a ratinha —, sofre. É isso que eu não posso suportar. E depois há-de cair na água, debruça-se de mais.
— Sendo assim — disse o gato —, quero prestar-te o serviço, mas não sei por que razão digo «sendo assim», uma vez que não percebo nada.
— És formidável — disse a ratinha.
— Mete a cabeça na minha boca e espera.
— Vai demorar muito tempo?
— O tempo de alguém me pisar o rabo — respondeu o gato; tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo de fora, não tenhas medo.

A ratinha afastou as mandíbulas do gato e enfiou a cabeça entre os dentes agudos. Retirou-a logo a seguir.

— Diz-me cá — perguntou —, comeste tubarão esta manhã?
— Ouve — disse o gato —, se não te agradar podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinha.

Parecia aborrecido.

— Não te zangues — pediu a ratinha.

Fechou os olhinhos pretos e pôs a cabeça em posição. Com precaução, o gato encostou os caninos pontiagudos ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos da ratinha misturavam-se aos seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-a estendida no passeio.

Onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio, o Apostólico, aproximavam-se a cantar.








boris vian
a espuma dos dias
trad. aníbal Fernandes
ulisseia
1974


22 fevereiro 2007

o sul do tempo




o olhar desfeito
na coerência do invisível

o remoto
lugar de areias ardentes
onde afogadas as mãos se soltam

o nome dos ventos
o sul do tempo

o sentido rumor
dos séculos imperfeitos
que te escondiam

esperavas
sob a mais alta estrela

o mundo a cercar-te
como se eu te levasse
o livro

pus o meu nome
na roldana do vento

era cedo
como nunca mais
voltaria a ser






gil t. sousa
poemas
2001




21 fevereiro 2007

em nome







em nome da tua ausência
construí com loucura uma grande casa branca
e ao longo das paredes te chorei








sophia de mello b. andressen
dual I
moraes
1972







20 fevereiro 2007

moravagine




Ó jovem, considera a secura
dos trágicos que se perdem em facécias. Não esqueças
que não existe alguma vez progresso
quando o coração petrifica. É
preciso que toda a ciência se
ordene à semelhança dum fruto que
se dependure na ponta de uma árvore
de carne e que amadureça
ao sol da paixão,
histologia, fotografia, campainha
eléctrica, telescópios, pássaros,
amperes, ferro de passar,
etc. – Tudo isto é para deslumbrar a porra da hu-
manidade.


O teu rosto é tão diferente
tão comovente molhado de
lágrimas e pronto a rebentar
de riso.





blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. ruy belo
livros cotovia
1992






17 fevereiro 2007

é amargo o coração do poema



É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma.







herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002






duelo após o baile de máscaras

16 fevereiro 2007

no mesmo espaço




Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

(1929)







constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



15 fevereiro 2007

sentires



saltei os dias, enquanto minha mãe embalava a máquina do tempo, tentando esquecer os gritos ruidosos. sentia o vai e vem acelerado da vida vazia, que guardava na memória das redes de secretos desejos. carregava nos ombros cactos. picavam-me a pele queimada pelo salitre. não havia dor, o sangue escorria como áscuas. a paixão perseguia um rasto agudo. fulgurava a pressão aterradora do sibilar da cobra pérfida, que atravessava o silêncio, da minha memória. saboreava no outro lado do dia, pitangas que colhia no quintal sem paredes. um rasto de esperma precário, fazia-me recordar erros em salas de tortura. senti-me um lugar. os sonhos transmitiam nevoeiros de palavras embaciadas mas hábeis. desnudava muda o ardor das manhãs. no espelho da casa onde vivia, as sombras tomavam formas de corpos rasgados de mim, enlaçados na sofreguidão do ciúme.



os pássaros com mangonha, debicavam a goiaba pútrida. estendi os dedos e toquei nas aves. sobre a mesa da sala, outras mãos, unidas nas sombras, filhas de estrelas escondidas e sem rostos. mãos que acariciavam o saber místico dos sentires. os dedos dançavam no brilho dos meus olhos, senti-os gélidos, extensos. olhei-os fixamente e saltavam miraculosas cores luminosas. feriu-me o gelo intenso da luz.



por fim, adormeci no sumo do fruto proibido.

entrei no engano das imagens...





l.maltez

14 fevereiro 2007

não pares de me chamar




não pares de me chamar
faz de mim o sul dos teus rios

põe-me céus de vertigem nos dias
ou mares
põe-me mares nos instantes
e acende-me nos olhos
um bonito grito
como se eu fosse a madrugada
ou aquela hora
em que numa pedra branca
me desenhas o mundo
e eu me arrependo
de enlouquecer

leva-me
leva-me pelos telhados mais altos
e ensina-me os horizontes sem fim
as árvores antigas
onde as cores das estações se escondem
onde começam os caminhos
onde acabam as fugas
onde terminam as procuras

e dá-me as cidades
as mais longínquas
as que crescem das casas que sonhaste
e põe-me a teu lado

debruça-me nessas janelas
para nenhuma solidão







gil t. sousa
poemas
2001






13 fevereiro 2007

livro da noite




*

há coisas que não faço voluntariamente:
sonho o que sonho,
sinto o que posso sentir,
e querer é coisa que não quero de modo
nenhum, todas estas coisas aconte-
cem, como se fossem sexo,
e eu o seu corpo, quando as faço.


*





per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004






11 fevereiro 2007

alejandra pizarnik / caminhos do espelho



I
E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é certo.

II
Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro
no limite afiado da noite.

III
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho
subitamente esbatida pela chuva.

IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

V
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda,
o ramo que o vento abandona no umbral.

VI
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás
e afugenta a menina que foste.

VII
A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.

VIII
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo,
no poço, bebia, recordo.

IX
Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.

X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida.
Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento.
Tudo fechado e o vento dentro.

XI
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.

XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo.
Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.

XIII
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem.
E o que desejava eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.

XIV
A noite parece um grito de lobo.

XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver,
fui à procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela
que dorme num país ao vento.

XVI
A minha queda sem fim na minha queda sem fim
onde ninguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava
outra não vi senão a mim mesma.

XVII
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu
embora me referisse à aurora luminosa.

XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul.
A água treme cheia de vento.

XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã.
Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira da afogada
que não cessa de passar pelo espelho.
Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto,
hei-de compreender o que a minha voz diz.







Alejandra Pizarnik
Extracção da Pedra da Loucura
(1968), tradução de Luciana Leiderfarb
Construções Portuárias #1,
Maio de 2002



10 fevereiro 2007

pictures at an exibition: klavdij sluban






Klavdij Sluban
Turkey

[Around the Black Sea - Winter Journeys (1997-2001)]
2000



Klavdij Sluban
Poland
[Other Shores - The Baltic Sea (2001-2005)]
2004




Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2005



Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2004




klavdij sluban








06 fevereiro 2007

nos dias nevoentos fecho as janelas


(…)

Nos dias nevoentos fecho as janelas,
acendo a luz forte
e deito-me no tapete.

Leio ou penso.
Ou então fumo,
enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem,
e as mais pesadas descem
e as mais leves se tornam pesadas,
até ser impossível destruir o silêncio.

É fascinante,
debaixo de uma luz que brilha tanto.

Lá fora, a terra
- a terra das criaturas que se aproximam uma das outras,
se tocam e falam.

O silêncio é sólido,
iluminado por cima,
aquecido pelos lados.

Durante seis meses fumo e leio,
estendido no tapete.

Depois chega o verão,
e subo à montanha,
e vou para o mar.

Rebento de sol e água,
do odor a terra quente
e agulhas de pinheiro.

Estou tremendamente forte.

(…)





apresentação do rosto
herberto helder
editora ulisseia
1968