21 janeiro 2025

pat boran / madressilva

 
 
 
 
                                                    para Ron Houchin
 
 
Meteu-se pelas estradas secundárias e conduziu durante horas
até o céu ser a poça de estrelas que ele perdera
na infância e da qual nunca se incomodara a sentir falta
até então, a noite dos seus cinquenta anos,
pais e vizinhos mortos havia muito, a velha casa
arrasada por um bulldozer, o lago
cheio e coberto com asfalto, um sinal de paragem
onde uma vez estivera posto um espantalho, a estrada
a desaparecer ao longe e apenas as estrelas
ainda familiares, ainda de confiança, e aquele perfume no escuro
a que ele chamava, então e ainda, madressilva.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




20 janeiro 2025

rami saari / melhoras



 
Nos banhos públicos de Al-Shifah em Schem
massajou-me as costas o jovem Sahid,
e o seu peito alto ofegou de tal modo
que as comportas todas do céu se abriram:
os joelhos dobrados tremeram na pedra,
seu hálito fundiu-se com os vapores da sala.
Do seu ventre, alpendre cheio de trigo e palha,
escorreram chuvas tardias alagando o solo.
E depois, o sabão. E depois, a água.
E depois,, toalhas e chávenas fumegantes.
Com o passar do tempo as comportas do céu entraram
à socapa no espaço reduzido que há entre as palavras.
 
 
 
rami saari
tradução de joão paulo esteves da silva
nervo/23
colectivo de poesia
janeiro/abril 2025
 



 

19 janeiro 2025

paul celan / no vermelho tardio

 
 
 
No vermelho tardio dormem os nomes:
um
é despertado pela noite
e levado com bastões brancos
para a muralha sul do coração,
sob os pinheiros:
um, de origem humana,
vai até à cidade de barro
onde a chuva se acolhe amiga
de uma hora marítima.
 
No azul
pronuncia uma palavra-árvore promissora de sombra,
e o nome do teu amor
acrescenta-lhe as suas sílabas.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. João barrento e y. k. Centeno
relógio d´água
2023




18 janeiro 2025

tomas tranströmer / lisboa

 
 
 
No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas
     subidas.
Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões
que acenavam através das grades.
Gritavam, queriam ser fotografados.
 
“Mas aqui”, disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,
“aqui estão os políticos.” Olhei para a fachada, a fachada, a fachada,
e no último andar, a uma janela, vi um homem
comum binóculo a olhar para o mar.
 
Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos
     muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
“Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?”
 
 
 
tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012





17 janeiro 2025

raffaele carrieri / um só fruto

 
 
 
Com o vermelho dum só fruto
Poderia beber comer
E pintar uma bandeira.
Com os bagos duma romã
Poderia acender fogueiras
Na língua
Ou abrir uma ourivesaria.
Entro como um ladrão
Neste mundo
De esferas e anéis
E não sei sair.
 
 
raffaele carrieri
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992





 

16 janeiro 2025

maria sousa / o passado é cada instante

 



 
o  passado é cada instante
em que a casa te parece cheia
 
há uma porta que ninguém abre
uma máquina de inventar vozes
 
e tu vives na solidão até
as lágrimas te cortarem a voz
 
 
 
maria sousa
não abras a porta a estranhos
do lado esquerdo
2019




15 janeiro 2025

maria f. roldão / fragilidade

 
 
 
No cesto das conquistas
coloco ovos de luz e ébano.
As dores bem arrumadas ao centro
e à volta o cansaço, em calibre mais pequeno.
No cimo, ervas de respostas,
em jeito de resguardo,
evitando que o pulso dispare outra vez.
 
Disponho camadas de ócio:
ferro das manhãs quezilentas.
Um papel vegetal de prudência.
 
E na asa tantos destemperos
que a mão mal consegue unir-se,
tão febril e trémula. Cheia de pavor
d’estilhaçar a vida.
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021
 




14 janeiro 2025

maria gabriela llansol / LV. eu sei

 
 
 
Um piano pode crescer como uma criança? Pode, nos nossos ou-
vidos formados, ser esse instrumento de sussurro, como dom
_______ também o urso se tornou minúsculo e o elefante se reduziu
à visão que eu tinha do marfim.        Se o desconhecido que havia de
entrar fosse órfão,
eu considerá-lo-ia mais livre do que só,
ou só era apenas a imagem do liberto.
 
 
 
maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & alvim
2006




13 janeiro 2025

gastão cruz / de cada vez

  
 
Contínua realidade que me sorves os dias
como hei-de responder-te se vives incluída
dos meus olhos abertos nas ávidas e frias
pedras incertas vida
 
prisioneira do espelho que embacias
de cada vez que a turva suicida
torna ao morrer visíveis
as formas com que comes os meus dias
 
 
 
gastão cruz
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




12 janeiro 2025

nina gorlanova / tercetos

 
 
 
As crianças não gastaram o seu dinheiro
Para os gelados
E deram-no ao pai para a cerveja.
 
A filha do meio
Desenvolveu o gosto pela leitura
Devido às minhas orações.
 
É só em sonhos que
Hoje em dia vejo
Pessoas que o conseguiram.
 
Tudo melhorou
Mesmo quando estávamos furiosos um com o outro
Nunca partimos um prato…
 
O meu filho mais novo
Lê como os Romanos antigos
Em voz alta e reclinado.
 
Ao ler a prosa de Brodsky
Descobri uma afinidade espiritual:
Uma intensa paixão pelo pó…
 
 
 
nina gorlanova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 




11 janeiro 2025

fernando ortiz / outra divagação

 
 
 
Onde estão os que o silêncio oculta?
Pergunta ao silêncio, se for a tua hora,
e com seus lábios o silêncio te falará.
Ao silêncio não podes responder-lhe
se não for com o silêncio que tu sabes
onde encontrar. Aí o silêncio habita
e nele estão os que  ao silêncio ouviram.
 
 
 
fernando ortiz
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





10 janeiro 2025

louise glück / lago na cratera

 
 
 
Houve uma guerra entre o bem e o mal.
Decidimos que o corpo era o bem.
 
Isso fez da morte o mal.
E virou a alma
inteiramente contra a morte.
 
Como um soldado raso desejoso
de servir um poderoso guerreiro, a alma
desejou aliar-se ao corpo.
 
Virou-se contra as trevas,
contra as formas de morte
que reconhecia.
 
De onde provém a voz
que diz: e se a guerra
for o mal? Que diz:
 
e se foi o corpo que nos fez isto,
nos deixou com medo do amor?
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




09 janeiro 2025

emanuel jorge botelho / claro/escuro

 
 
 
faço o quê com a amargura?
guardo-a no bolso,
ou ponho sobre ela o peso de um dia aziago?
talvez o mar me salve, ou me converta,
talvez a terra seja o meu arado.
 
quando o tempo passar à minha frente,
peço-lhe uma folha de tília,
e um pedaço de céu.
 
 
 
emanuel jorge botelho
sombras e outros disfarces
averno
2022