1
  estas cidades, grés animal, as
garrafas de sangue nos passeios,
  prenunciam devagarmente um
acordar translúcido. o que
  movimentam no espaço, e aos
bandos
  os pássaros decifram sobre o
musgo e a hera,
  é o mesmo ar que na traqueia
queima; e o cimento,
  translúcido, o mesmo que nos
braços percorreu as veias,
  que nos olhos foi lava, que nos
brilhou na boca
  dizendo: estas cidades, grés
animal, um acordar sem boca.
  2 
  movem nos muros, a vagina
mineral das mães
  adormecidas, entre os apitos
trémulos do aço
  e lenços verdes onde ocultam a
cara. prenunciam, é certo,
  algum visível afastamento das
madeiras, algum
  pensamento violentado, por isso
as coisas permanecem sentadas
  e compreensíveis, afastadas de
súbito pelo vento oco. 
  3
  arrebanhados, como cães feitos
de água, os dentes
  entendem, decifram sob o grés
as patadas da terra,
  espalham na violência um musgo
que prenuncia a
  transparência. foram
construídas, assinaladas sobre o mapa por
  bandos de pássaros, respondem a
algum ódio decisivo,
  algum afastamento da violência;
o grés, os olhos,
  e o próprio desenho aéreo das
lágrimas, aonde
  se perde pé muito de repente e
se afundam as asas
  como uma lava dividida, um
vidro, a soar junto à boca. 
  4
  separam, mas esse
  é o seu rancor exaltado, a
madeira onde furam
  as gengivas dos cães, e muito
depois brilha o calcário dos dentes.
  nasceram de um modo diferente
de pousar os ossos
  contra o peso da tarde, alguma
raiva, algum pedal minucioso,
  como quando a sombra do
pianista oculta um muro baixo
  onde está sentada, ausente ao
musgo, a mulher que um dia
                                                             
          [desejámos. 
  5
  outras, as que brilham, as que
espalham um lenço verde
  ao pescoço dos cães, e largas
redes no ar empalidecido
  invisíveis capturam, as que vêm
  de dentro de um muro, e sobre
um muro movem
  ombros de grés, então é noite,
apetece uma nuvem,
  uma pedra sem cor que nos
oculte o peito, o sangue
  transborda, e os apitos soam
com a fúria dos grandes animais. 
  6
  vêm, talvez, do acaso, como
grandes nuvens de musgo
                                                                [amordaçado,
  ou animais encostados, ou a
violência de uma gengiva
  onde o sangue bateu com patadas
de cuspo. uma manhã
  se afastam no rancor,
recobertas de grés permanecem sentadas,
  prenunciando, talvez, o ronco
insuportável de uma boca. 
  7
  o que movem no ar movem no
sangue, um grés animal,
  a madeira das mães anoitecidas.
  amealham no peito os grãos
translúcidos, prenunciando
  algum afastamento decisivo.
  o que afastam capturam. é um
novo muro, então,
  à sombra das cidades, deitado
sobre a boca. 
 
antónio franco alexandre
 
os objectos principais
  centelha
  1979