19 outubro 2011

charlie chaplin / o último discurso de “o grande ditador”









Sinto muito, mas não quero ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não quero governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria apenas de ajudar: judeus, não judeus, negros ou brancos.

Todos nós desejamos ajudarmo-nos uns aos outros. São assim os seres humanos. Queremos viver para o bem do próximo e não para o seu infortúnio. Por que razão nos havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Há espaço para todos neste mundo. A Terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza! Porém, perdemo-nos. A cobiça envenenou a alma dos homens, fez erguerem-se no mundo as muralhas do ódio, e tem-nos feito marchar a passos largos para a miséria e para a morte. Criámos a era da velocidade, mas sentimo-nos aprisionados dentro dela. A Máquina, que produz abundância, tem-nos deixado na penúria. O nosso conhecimento, transformou-nos em cépticos; a nossa inteligência, fez-nos duros e cruéis. Pensamos muito e sentimos muito pouco. Muito mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Muito mais do que de inteligência, precisamos de afecto e de ternura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido.

A aviação e a rádio aproximaram-nos mais. A sua própria natureza é um apelo eloquente à bondade do homem. Um apelo à fraternidade universal, à união de todos nós. Neste preciso momento a minha voz chega  a milhares de pessoas pelo mundo fora, milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes.
Aos que me podem ouvir, eu digo: “ Não desesperem! A desgraça que se abateu sobre nós não é mais do que o fruto da cobiça em agonia, da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores caem e o poder que arrebataram ao povo, ao povo há-de regressar. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais que vos desprezam, que vos escravizam, que controlam as vossas vidas, que ditam os vossos actos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado e vos usam como carne para canhão. Não sóis máquinas! Homens é que sóis! E com o amor da humanidade nas vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do Homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas de todos os homens! Está em vós! Vós, o Povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela, de a tornar uma maravilhosa aventura. Portanto – em nome da Democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um Mundo Novo, um Mundo Bom que a todos assegure uma oportunidade de trabalho, um futuro para a juventude e a segurança à velhice.   

É com estas promessas que gente perversa tem subido ao poder. Mas só para abusar da vossa credulidade. Não cumprem o que prometem. Nunca cumprirão! Os ditadores libertam-se, escravizando, porém, o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, derrubar as fronteiras nacionais, pôr fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um Mundo de razão, um mundo onde a ciência e o progresso conduzam a prosperidade de todos. Soldados, em nome da Democracia, unamo-nos!


Hannah, estás a ouvir-me? Onde estiveres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol começa a romper as nuvens que se dispersam! Estamos a sair da treva para a luz! Começamos a entrar num mundo novo – um mundo melhor, onde os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e começa, afinal, a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos Hannah! Ergue os olhos!





charlie chaplin
o grande ditador
outubro de 1940





18 outubro 2011

filinto elísio / soneto






Nasci – logo a meus pais custou dinheiro
o baptismo, que Deus nos dá de graça.
Tive uso de razão – Perdi a graça –
dei-me ao rol chegou a páscoa – dei dinheiro.

Quis casar com uma moça – mais dinheiro.
Brinquei com ela – não brinquei de graça:
Que aos nove meses me custou a graça
Para o Mergulhador capa e dinheiro.

Morreu minha mulher – não achei graça
e menos graça no arbitral dinheiro
da oferta; que o prior não vai de graça.

Se o ser sacristão requer sempre dinheiro,
como cumprem com dar graças de graça
o que as graças nos vendem por dinheiro?






filinto elísio
lisboa 1734-1819






17 outubro 2011

rita mpoumi-pappas / krinio





Apontem para o meu coração
agora é melhor para mim.
para vos tornar tudo mais fácil
cosi este pedaço de pano preto
mesmo no meio dos meus seios.

Não sei como será o vosso disparo
- pobres soldados imberbes – fizeram-vos levantar
de madrugada por minha causa
nunca empunhei uma espingarda – não sei

Vejo os vossos olhos muito abertos
 - não podeis evitar tudo isto –
as vossas mãos querem tocar-me
antes de puxarem o gatilho – eu compreendo

Provavelmente ainda tendes as alcunhas
da adolescência
e quem sabe, talvez tenhamos brincado juntos nas ruas

Prossigam, poupem-me à geada da manhã
estou quase nua
vistam-me com os vossos tiros
sorriam para mim rapazes
deixem o meu corpo coberto pelo vosso olhar

Nunca um amante me fez isso
nem mesmo em sonhos.








rita mpoumi-pappas
a palavra interdita
trad. de maria de lourdes guimarães
campo das letras
2001




16 outubro 2011

querino / la notte


                                                 (ao som de Wise one, John Coltrane)




Naquela noite,
uma noite como essa,
eu te via, meu caro, deitado
sobre teu vômito a dizer palavras de morte,
a dizer o que eu…
o que…
eu também te via ali, abandonado
no banheiro, as calças arriadas,
e diante de você um espelho,
porque narciso tu era
e então a beleza te levou até ali,
até esse lugar de apenas solidão.
Ali eu também estava:
eu era o teu vômito, o teu espelho muito claro;
eu via coisas que ninguém mais
como testemunha
saberia
se comportar.
Ali eu também estava, numa noite como essa.
Mas eu não te compreendia,
assim como vocês não me compreendiam. Eu apenas observava.
Eu estava longe.
Eu era outra coisa que talvez agora…

O mundo se estendia a diante,
era um caminho, era a minha casa.
Eu estava indo.
In a silent way, eu estava indo. Mas
junto a você eu morria também, meu caro,
junto a você eu mergulhava nesse rio de teu mijo sobre o chão;
eu morria mais ainda,
a beleza também havia me levado até ali,
e mais ainda.
Mais longe ainda que vocês, eu estava indo.
Eu tinha chegado.
Eu via a morte. Eu via a face de –
Ela não estava mais ali.
Fazia pouco, ela tinha corrido trecho
para onde eu não poderia continuar.
Era o fim, meu caro.
Era o fim e eu não te compreendia.
Eu não compreendia a vocês que tanto me ouviam
falar das horas e horas de nossa fuga:
iríamos para onde, até onde,
eu me perguntava, até quando.
Vocês também me falavam de intervenções e danças,
e naquela noite dioniso dançava –
tínhamos estado com ele mais além,
no alto daquele morro fora da cidade,
em um teatro aqui agora.
A nós ele revelava segredos,
a nós que por essa antecâmara precisávamos passar
– e é essa a noite em que estamos.
Cada um na sua, estávamos juntos. Estamos juntos,
somos um – e não há transcendência alguma em tudo isso.
Dioniso é aquele que passa: passamos.

E agora o bojo de nossa vitória:
estávamos ali.
Eu estava ali e ela não, a sua ausência sim.
E era porisso que eu não compreendia a vocês
e nem vocês a mim.
Há sempre um ponto mais além, mais aquém
onde chegamos
e ninguém mais. Um pouco a esquerda
eu estava.
Segurei a tua mão por um tempo,
te ofereci o meu ombro,
mas não o bastante, eu sei.
Eu estava só.
Eu era apenas eu.
Não havia mais alguém ali.
O telefone não atendia, não tocava.
Sem a tua graça quem eu seria,
eu perguntava. Um mundo se desfez,
um caminho, a minha casa.
Esse estradar,
não mais.
Não mais, eu dizia: não mais
(e não era para vocês esse meu desalinho,
mas para quem ali não mais estava,
para a parte que nos falta nessa busca por quem somos).

Eu era ninguém,
e o seu nome, mulher, eu escrevia
em passos indecifráveis, numa língua estranha
(havia um tinto derramado no chão, se bem me lembro).
Vocês não me compreendiam.
Talvez nesse instante.
Ela sim, até um tempo que agora já não é.
E agora, eu me perguntava, agora que foi aquela noite,
por onde vai esse estradar.
Eu que por tantas vezes disse Sim.
Eu que me gabava, mesmo sem querer,
de tudo isso que tem sido
a nossa vida. Eu tenho orgulho
de tudo o que construímos,
desse lugar que somos.
É para você, mulher, que traço essas linhas.
Pelas noites e dias de nossa presença,
é tua a origem
de todos os poemas. São teus.
Vocês não me compreendiam, não me compreendem,
mas sei o que digo.
Naquela noite eu estive só, eu era ninguém.

Estou só agora,
quero dizer, não há alguém aqui.






querino
sobre quantos cafés desperdiçamos
2011




15 outubro 2011

jerzy ficowski / não consegui salvar…





Não consegui salvar
uma única vida

Não sabia como parar
uma única bala

e vagueio pelos cemitérios
que não estão lá
procuro palavras
que não estão lá
corro

para ajudar onde ninguém chamou
para socorrer depois de tudo ter passado
quero estar à hora exacta
mesmo que seja demasiado tarde






jerzy ficowski
a palavra interdita
trad. maria de lourdes guimarães
campo das letras
2001


manifesto para os protestos de 15 de outubro







No dia 15 de Outubro pessoas de todo o mundo tomarão as ruas e as praças. Da América à Ásia, de África à Europa, as pessoas estão a erguer-se para lutar pelos seus direitos e pedir uma autêntica democracia. Agora chegou o momento de nos unirmos num protesto não violento à escala global.

Os poderes estabelecidos actuam em benefício de uns poucos, ignorando a vontade da grande maioria e sem se importarem com o custo humano ou ecológico que tenhamos que pagar. Há que pôr fim a esta situação intolerável.

Unidos em uma só voz, faremos saber aos políticos e às elites financeiras que eles servem, que agora somos nós, o povo, que decidirá o nosso futuro. Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros que não nos representam.

No dia 15 de Outubro encontramo-nos nas ruas para pôr em marcha a mudança global que queremos. Vamos manifestar-nos pacificamente e vamos organizar-nos até atingirmos o nosso objectivo.

Chegou a hora de nos unirmos. Chegou a hora de nos ouvirem.



13 outubro 2011

joyce mansour / o meu riso vai alto





O meu riso vai alto,
Mais alto que os chapéus dos cardeais
Mais alto que a esperança
Os meus seios riem quando o sol brilha,
Apesar dos meus fatos apesar do meu noivo.
Feia que sou, sou feliz.
Deus e os vampiros
Amam-me.





joyce mansour
trad. mário cesariny
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




12 outubro 2011

pablo garcia casado / dover, nh




arrancaste-me o coração mas tenho frescas as artérias
as frases preparadas para pedir-te que voltes
os papéis em regra
                                      passo o dia
entre facturas grossistas caixas registadoras
mas sou um homem novo deixei isso e tenho dinheiro
dinheiro para ti para a miúda dinheiro para uns meses

tenho de falar contigo de te dizer coisas coisas que nunca te disse







pablo garcia casado
el mapa de américa
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004




11 outubro 2011

gil t. sousa / tudo muda





39

tudo muda
quando um verso rebenta
nos lábios
certos



gil t. sousa
falso lugar
2004




10 outubro 2011

douglas coupland / a vida depois de deus




A seguir fiquei mesmo cheio de solidão e tão farto das coisas más da minha vida e do mundo que disse para comigo: «meu deus, faz de mim um pássaro… é tudo o que sempre desejei… um pássaro branco e ágil livre de vergonha, de maldade e de medo da solidão, e dá-me outros pássaros brancos com quem voar, dá-me um céu tão grande e tão vasto que, se eu nunca quiser descer para a terra, não tenha que o fazer.»

Mas deus, em vez disso, deu-me estas palavras, e eu digo-as aqui.






douglas coupland
a vida depois de deus
trad. telma costa
teorema
1994




07 outubro 2011

goethe / viagem a itália





Trento, 10 de Setembro, à noite [1786]


“Um rapaz novo, a quem perguntei pelos lugares mais importantes da cidade, mostrou-me uma casa a que se chama a Casa do Diabo (Palazzo Galasso, construído por ordem do banqueiro de Augsburgo George Fugger em 1602 (hoje Palazzo Zambelli), e sobre o qual circulava a lenda de que teria sido construído pelo diabo numa só noite), que o grande destruidor de sempre terá construído numa só noite com pedras que num ápice para aqui trouxe. O bom do homem, porém, não foi capaz de descobrir a única coisa verdadeiramente digna de atenção nesta casa, e que é o facto de se tratar da única construção de bom gosto que me foi dado ver em Trento, certamente construída em tempos passados por um italiano de alto nível.
À tardinha, pelas cinco horas, segui viagem; repetiu-se o espectáculo de ontem à tarde e as cigarras, que começam logo a cantar mal o Sol se põe. Durante uma boa milha o caminho segue entre muros por cima dos quais se vêem latadas com uvas; outros muros, não tão altos, foram alteados com pedras, espinhos e outras coisas, para evitar que os transeuntes colham uvas. Muitos proprietários pulverizam as fieiras da frente com cal, o que torna as uvas intragáveis, mas não afecta o vinho, porque a fermentação absorve tudo.”



goethe
viagem a itália
trad. joão barrento
relógio d`água
2001