29 março 2006
28 março 2006
estações
3)
"28 de Outubro (1935)
A poesia começa quando um idiota diz, a respeito do mar: «Parece azeite.» Não é, de facto, uma descrição exacta de um mar bonançoso, mas o prazer de ter descoberto a semelhança, a exactidão de um liame misterioso, a necessidade de se gritar aos quatro ventos que de tal nos apercebemos.
No entanto, é igualmente idiota determo-nos aqui. Começada assim a poesia, é preciso terminá-la e compor uma narrativa rica de nexos e que equivalha a um juízo de valor.
Esta seria a poesia-tipo, a ideia. Mas, habitualmente, as obras são feitas de sentimentos — a exacta descrição da bonança — que, de vez em quando, espumejam em descobertas de relações. Pode ser que a poesia-tipo seja irreal e que — tal como nós vivemos também de micróbios — o que até agora foi feito seja constituído por simples pedaços miméticos (sentimento), por pensamentos (lógica) e por nexos mal esboçados (poesia). Uma combinação mais absoluta seria talvez irrespirável e idiota. "
"28 de Outubro (1935)
A poesia começa quando um idiota diz, a respeito do mar: «Parece azeite.» Não é, de facto, uma descrição exacta de um mar bonançoso, mas o prazer de ter descoberto a semelhança, a exactidão de um liame misterioso, a necessidade de se gritar aos quatro ventos que de tal nos apercebemos.
No entanto, é igualmente idiota determo-nos aqui. Começada assim a poesia, é preciso terminá-la e compor uma narrativa rica de nexos e que equivalha a um juízo de valor.
Esta seria a poesia-tipo, a ideia. Mas, habitualmente, as obras são feitas de sentimentos — a exacta descrição da bonança — que, de vez em quando, espumejam em descobertas de relações. Pode ser que a poesia-tipo seja irreal e que — tal como nós vivemos também de micróbios — o que até agora foi feito seja constituído por simples pedaços miméticos (sentimento), por pensamentos (lógica) e por nexos mal esboçados (poesia). Uma combinação mais absoluta seria talvez irrespirável e idiota. "
Cesare Pavese
O ofício de Viver
Diário (1935-1950)
Trad. Alfredo Amorim
Relógio d’ água
2004
Diário (1935-1950)
Trad. Alfredo Amorim
Relógio d’ água
2004
27 março 2006
post it / alexandre moreira
poema 15 ou 18
Não há homem verdadeiramente sozinho de
coração a esquecer a parecer
idiota com banco e negras
forma salto finalmente
o pálido o alemão com passo com porta
os momentos que se apoderam
há momentos que se apoderam nada mais se
move na sala de fumo conversas de
peito indignado a mover-se na sala de fumo um rapaz
muito bem talvez um rapaz discretamente envolvente
bem talvez envolvente
dois retratos a negociar-nos de chapéu alto de chapéu
alto se dorme suavemente
e as mãos as mãos as mãos são pouco sacrifício agora
de murmúrio diluído em receio se
é delicioso se há momentos que se apoderam do
mar ao longe a face a declarar guerra branca como
interior do vidro como troçar de nós mesmos um
minuto destes será quase vazio será
todo à beira desta cama não ouso
este pequeno papel espera não estou longe morrer
é afinal um dia bonito imóvel de vez até lá domir
comer tomei banho até lá que é afinal imóvel de vez até lá
até sempre
ter o sol todo coisa teatral por baixo lisboa
e eu nesta rua branca a vislumbrar um aborrecimento inteiro.
alexandre moreira
Não há homem verdadeiramente sozinho de
coração a esquecer a parecer
idiota com banco e negras
forma salto finalmente
o pálido o alemão com passo com porta
os momentos que se apoderam
há momentos que se apoderam nada mais se
move na sala de fumo conversas de
peito indignado a mover-se na sala de fumo um rapaz
muito bem talvez um rapaz discretamente envolvente
bem talvez envolvente
dois retratos a negociar-nos de chapéu alto de chapéu
alto se dorme suavemente
e as mãos as mãos as mãos são pouco sacrifício agora
de murmúrio diluído em receio se
é delicioso se há momentos que se apoderam do
mar ao longe a face a declarar guerra branca como
interior do vidro como troçar de nós mesmos um
minuto destes será quase vazio será
todo à beira desta cama não ouso
este pequeno papel espera não estou longe morrer
é afinal um dia bonito imóvel de vez até lá domir
comer tomei banho até lá que é afinal imóvel de vez até lá
até sempre
ter o sol todo coisa teatral por baixo lisboa
e eu nesta rua branca a vislumbrar um aborrecimento inteiro.
alexandre moreira
26 março 2006
um poema de: pier paolo pasolini
A UM PAPA
Poucos dias antes de morreres, a morte
pousou os olhos em alguém da tua idade:
aos vinte anos, tu estudavas, ele era pedreiro,
tu, nobre, rico, ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma, voltando a dar-lhe a sua juventude.
Vi os seus despojos, pobre Zucchetto.
Andava de noite, bêbado, à volta dos Mercados,
e um eléctrico que vinha de San Paolo atropelou-o
e arrastou-o por uns metros de carris no meio dos plátanos:
durante umas horas ficou ali, sob o rodado:
poucas pessoas se juntaram em redor, olhando-o,
em silêncio: já era tarde, havia pouca gente.
Um dos homens que existem para que tu existas,
um velho polícia, desbocado como todos os patifes,
gritava aos que se aproximavam mais: «Larguem-lhe os colhões!»
Depois veio uma ambulância buscá-lo:
as pessoas desapareceram, só ficaram uns grupos aqui e acolá,
e, mais à frente, a dona de um cabaré,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto tinha ficado debaixo de um eléctrico, que estava morto.
Poucos dias depois, morrias tu: Zucchetto era um
dos do teu grande rebanho romano e humano,
um pobre bêbado, sem família nem leito,
que andava de noite, vivendo ao deus-dará.
Tu ignoravas: como ignoravas
outros milhares e milhares de cristos como ele.
Talvez seja cruel ao perguntar por que razão
a gente como Zucchetto é indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem na poeira antiga, na lama de outras eras.
Não muito longe de onde tu viveste,
à vista da bela cúpula de San Pietro,
fica um desses lugares, o Gelsomino...
Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e no sopé,
entre um charco e uma fieira de prédios novos,
um montão de tugúrios miseráveis, não casas mas pocilgas.
Bastava um gesto teu, uma palavra,
para esses teus filhos terem uma casa:
nunca fizeste um gesto, nunca disseste uma palavra.
Ninguém te pedia que perdoasses Marx! Uma vaga
imensa que irrompe sobre milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas não se fala, na tua religião, de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu sabias que pecar não é fazer o mal:
não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.
Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste:
não houve quem mais pecasse do que tu.
poemas
pier paolo pasolini
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005
22 março 2006
post it / luís melo
[ Coiso! ]
... Tão baralhado
tão cheio de bicos
para cima
e para baixo.
A bússola maluca
a rodopiar desatinos;
o sol a sul
anti-magnético
desnorteado;
espectros
esvoaçantes
não identificados.
Vogar à deriva
sem radar:
algures a plenitude
no arco ogival
a basílica
vertigem gótica
naves laterais
de inexistência
e vacuidade;
Ah, a promenade,
a nave central
com declive
a tender
para o confuso
e infinito
do alfa à morte
do ómega ao parto.
Vagamente...
marcial um Viva-se !
Pois!
...Vagamente !
uma missão
logo à partida
inconclu-ida
inconclu-sivel
inconclu-dente
inconclu-coisa-nenhuma
de uma longa
e vaga
sim sim sim ... vaga
caminhada
até aqui
e a sê-lo
de ser onda
do meu mar
mural de história
pouco nada
ante-projecto
de desespero!
Sem sentido
salgado
(e como é obvio,...)
... vaga _ mente
escorrer por fora
de um globo ocular
ou... ser lágrima !
luís melo
21 março 2006
20 março 2006
post it / l. maltez
no bater das portas
entrei no lado azul da noite
em silêncio pesado
tropecei na verde porta
com palavras embrionárias
flui da obscuridade
sem nome de gente
empurrei o verão
esquecida, na inocência do tempo
do lado de lá, disseminei aromas
na magia dos ventos desabridos
rostos sedentos,
aterrados,
suspirantes no sossego
duma noite, sem paisagem
transpirada de azul
voraz passa incandescente
a idade louca de um tempo
19 março 2006
post it / rui martins
eclipse
há um piano a tocar(te) no quarto.
Fixas os olhos em mim e deixas o tempo passar
atrasando as horas
negando beijos
adormecendo na minha mão, todos os dias mais um pouco.
[Amo-te porque existo]
Sopro água nesse rosto
conto as gotas e adormeço no banco das tuas mãos transparentes.
Flutuas sobre a cama na força que drenas do corpo tocado Existes eternamente nua em cada marca que os meus lábios deixaram [em cada regresso] Com um gesto fechas os olhos, dás-me outro mundo, guardando-me dentro de ti como fazes aos segredos.
PS - Conservo os teus mamilos em absinto queimado, ainda me ardem na boca.
rui martins
há um piano a tocar(te) no quarto.
Fixas os olhos em mim e deixas o tempo passar
atrasando as horas
negando beijos
adormecendo na minha mão, todos os dias mais um pouco.
[Amo-te porque existo]
Sopro água nesse rosto
conto as gotas e adormeço no banco das tuas mãos transparentes.
Flutuas sobre a cama na força que drenas do corpo tocado Existes eternamente nua em cada marca que os meus lábios deixaram [em cada regresso] Com um gesto fechas os olhos, dás-me outro mundo, guardando-me dentro de ti como fazes aos segredos.
PS - Conservo os teus mamilos em absinto queimado, ainda me ardem na boca.
rui martins
17 março 2006
estações
2)
Sandro Botticelli, Birth of Venus (detail)
hoje,
o sopro dos anjos,
onde já nem a sombra
chegava.
gil t. sousa
16 março 2006
post it / carla ribeiro
eu sou as personagens que tu representas
as falas que inventas
as histórias que gostarias de ter vivido
os sentimentos que sabes ter fingido
a cartilha das tuas opções
o chorrilho das tuas razões
as viagens que nunca fizeste
o grande amor que não tiveste
o talento que não é o teu
o saber que tens e que é o meu
a tua vida é o maior livro em que escrevo
nele não ficará registado tudo aquilo que não fiz
tudo aquilo que quero escrever mas de verdade temo
carla ribeiro
as falas que inventas
as histórias que gostarias de ter vivido
os sentimentos que sabes ter fingido
a cartilha das tuas opções
o chorrilho das tuas razões
as viagens que nunca fizeste
o grande amor que não tiveste
o talento que não é o teu
o saber que tens e que é o meu
a tua vida é o maior livro em que escrevo
nele não ficará registado tudo aquilo que não fiz
tudo aquilo que quero escrever mas de verdade temo
carla ribeiro
15 março 2006
post it / m. f. s.
até nós chegavam as notícias murmuradas
nas brisas da beira-mar
eram os rastos das jovens mães em alvoroço
os sons desarticulados das crianças nos ninhos
o desenho do futuro incandescente
as adolescentes ensaiavam meneios
como protagonistas de telenovelas
e riam olhando de través os rapazes
gulosos
os cabelos embranqueciam
nas cabeças dos animais domésticos
de olhos suplicantes
era notícia
m.f.s.
13 março 2006
estações
1)
se não fosse segunda-feira, metia uns ténis e uma t-shirt preta. punha os headphones com muito Pergolesi (sim, o Giovanni Battista) : Stabat Mater nas versões que me fosse possível reunir. saía pelas ruas mais solarengas e cagava-me para o facto de ser o elo mais fraco na cadeia da criação. sentava-me na Capela Sistina, volume no máximo, ria-me muito cá para dentro daquele cromo que vai dar 160 mil euros para viajar no espaço e passava a manhã a perguntar-me:
- mas quem era este Miguel Ângelo?
… mas sendo segunda-feira, deixo o telefone tocar, minimizo o excel e colo aqui este pormenor.
se não fosse segunda-feira, metia uns ténis e uma t-shirt preta. punha os headphones com muito Pergolesi (sim, o Giovanni Battista) : Stabat Mater nas versões que me fosse possível reunir. saía pelas ruas mais solarengas e cagava-me para o facto de ser o elo mais fraco na cadeia da criação. sentava-me na Capela Sistina, volume no máximo, ria-me muito cá para dentro daquele cromo que vai dar 160 mil euros para viajar no espaço e passava a manhã a perguntar-me:
- mas quem era este Miguel Ângelo?
… mas sendo segunda-feira, deixo o telefone tocar, minimizo o excel e colo aqui este pormenor.
gil t. sousa
12 março 2006
Nem Sempre Sou Igual
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...
Alberto Caeiro
O Guardador de Rebanhos
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