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24 agosto 2015

mário cesariny / o riso útil


o riso útil da amorosa
retine de tal maneira
no pobre quarto côr-de-rosa

que as tuas mãos de senhor
já não sabem por que milagre
ainda é puro o amor



mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981



30 maio 2015

mário cesariny / raio de luz



Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
    desde pequenos.
 
Burgueses somos nós todos
       ó literatos.
Burgueses somos nós todos
      ratos e gatos

Burgueses somos nós todos
    por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
    que horror irmãos.
 
Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
     desde pequenos.



mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991




18 março 2015

mário cesariny / autografia



[…]
M.C. - «Queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti um mar de uma rosa de espuma».
Olha, eu não sei se realmente era isso que eu queria…
não sei… posso tê-lo querido. Posso ter desejado isso
diante de algumas adversidades. O poema também é
verdade, não te vou dizer mais que o que está lá escrito.
É aquilo! Fomos sempre lunáticos, lunáticos do passado
e lunáticos do futuro, não há nenhum país que esteja
quatrocentos anos à espera que um rei reapareça. Não
existe. E depois aparece um borra-botas, é ele!
Trezentos anos depois! Isto é fantástico, isto é bonito
até. É um povo menino, um povo criança, não é?
Mas depois não dá para ser país. Como a Alemanha.
Não dá… E querem que sejamos, querem-nos…
A CEE quer isso. Que sejamos. Que cresçamos.
Há uma coisa muito bonita, eu não sei alemão, e em
inglês também não averiguei, eu tenho ali um
dicionário de marinha, isto é assim, o barco assim,
a vela assado, depois há uma expressão que diz assim:
«dar a volta ao mundo», que é uma operação no alto
mar, mas tu sabes o que isto é? É fazer uma rotação
completa com o barco. Quer dizer, o mundo são eles,
não é o que está fora.
Mas suspeito muito de que isto só cá. Dar a volta ao
mundo é ir a Berlim e a Pequim, não é? Não, não, não.
É dar uma volta a esta cadeira onde eu estou, dei a
Volta ao mundo, porque o mundo sou eu.

M.C - Não, não pode ser dor. Pode-se ter saudade
de um paraíso, sabes? Saudades do inferno é que
ninguém tem. E o Pascoaes disse isso, que a saudade
é uma conjunção, um anel, um anseio de um passado
já desaparecido e de um futuro também, a chegar.
São duas coisas juntas. Porque tornar presente uma
coisa que já passou, já é de alguma maneira futurá-la,
não é?
Tenho ali muitos livros sobre a saudade… agora, é
uma coisa um bocado portuguesa, não é? Porque
somos um país aqui do extremo da Europa, aqui à
beira-mar… não temos muitas hipóteses. Então,
sonhamos, sonhamos muito. Muito sonhadores…
quer dizer… tenho saudades de comer uma grande
lagosta, tenho saudades de quê? De?...
olha, tenho saudades de voar! Ah! Isso tenho!
Porque eu, não sei desde quando, mas quase desde
miúdo, até aos cinquenta anos, todas as noites,
eu já adormecia a sorrir de gozo, porque sonhava
SEMPRE que voava, e era uma coisa tão boa,
tão boa… uiiiii!
E eu orientava-me! E depois não tinha… quer dizer,
não havia paisagem. Era o espaço puro… não se via
nada. Maravilha.
[…]


autografia
um filme de miguel gonçalves mendes
a phala 1#2007
de s. jerónimo a cesariny





21 fevereiro 2015

mário cesariny / voz numa pedra



Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde “a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela”
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
“a machadada e o propósito de não sacrificar-se não constituirão ao sol coisa nenhuma”
nada está escrito afinal



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




09 dezembro 2014

mário cesariny / homenagem a franz kafka




Talvez a criança semi-devorada recupere o uso da fala
e nos diga o silêncio dos guardas
e os seus capacetes de aço escuro
talvez as salas se desmoronem contigo
para revelarem o segredo dos juízes
— os cubos amarelos na amplidão dos tectos —
talvez tu, Franz, soldado no abismo,
pequeno e secreto deus das metamorfoses
um olho nu a descansar sobre Zina
friamente
e os teus dedos muito leves e brancos
atravessando-lhe em lentidão o rosto.


Após a noite
quando as aves já cantam na manhã
o teu corpo envolvido em vermes e rosas
debruça-se febril nas montanhas
revelando o guarda
redescobrindo a tempestade intensa e serena
os passos mais recônditos no interior da seiva
as árvores mais pétreas no fundo do deserto
a loucura mais lúcida no trânsito da cidade:
aqueles homens sentados nos passeios das ruas
dobrados sobre si mesmos
auscultando pequenos seres misteriosos
e a conservação do rito mais solene.


A tua liturgia é o hábito
de veres o mundo de costas morrendo
quando nas árvores
os corpos já pendem ressequidos
maduros como frutos de verão.
Pelo silêncio da madrugada
as tuas mãos acariciam-nos dolorosamente.
Um choro ergue-se nos campos ondulantes
e refazemos este homem comummente vestido
que ignora a lei e caminha imperturbável
para além dos seus passos e das suas palavras;
nas pedras funâmbulas que limitam a cidade
— guilhotina de múltiplas lâminas
de eficácia perfeitamente controlada —
e a revelam ao viajante hierárquica
levanta-se no silêncio do teu quarto.
Já tarde
quando erguido no leito
ansioso aguardas
o pássaro vem dançar sobre o teu rosto
balançando-se penosamente até te ferir,
revelando aquele fumo
que teus olhos se habituaram a perfurar
(teus olhos a máquina perfeita
e devoradora de tempo e mitos).
As tuas três mil colunas rodeiam-te
quando o incêndio principia.
Agora o teu rosto
está negro de temor, desfalecido
e as rosas rubras queimam-te
as mãos
na sua febre outonal e raivosa.
Começa outra vez o crepúsculo antigo e pressentido
a mortalha iniciada cedo
no descanso da montanha
na coluna do termómetro obrigatório e detestado
no silêncio da galeria povoada de mortes
com lágrimas
que não quiseste revelar
e o cinzento das coisas em putrefação
deslizando lentamente
e a noite, A NoITE
    
                     A MoRTE

A TUA MoRTE ACARICIADA PELAS TUAS

            MÃos.




mário cesariny
antologia do cadáver esquisito
assírio & alvim
1989




27 outubro 2014

mário cesariny / ode doméstica



tudo no teu sorriso diz
que só te falta um pretexto
para seres feliz

uma querela talvez chegasse
ou um pequeno pastor que passasse
na estrada, com suas ovelhas

um riso, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor

eu
vou pensando em coisas velhas
- sem sombra de desdém! -
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem

e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado

e declina, o dia

o pequeno pastor já não vem




mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981




06 agosto 2014

mário cesariny / o moço pastor que ali vem cantar




III

o moço pastor que ali vem cantar
a sombra que deu
aos montes que têm o rio a passar
outro azul no céu

vê perto seu canto que ouvido se esconde
e é o que ele sabe
mas longe na noite sem fim lhe responde
a mesma verdade

que é a estação fria como está nos ramos
e na lua-cheia
pequeno cordeiro que há anos e anos
ele pastoreia



mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981




19 maio 2014

mário cesariny / no país


no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato



mário cesariny
manual de prestidigitação
discurso sobre a reabilitação do real quotidiano
assírio & alvim
1981




13 novembro 2013

mário cesariny / discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro



Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão      a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem



mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981




07 setembro 2013

mário cesariny / lembra-te



Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



23 agosto 2013

mário cesariny / you are welcome to elsinore



Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



29 maio 2013

mário cesariny / a criança




Objecto que se usava para provocar solidão.
Os últimos a conhecerem o seu emprego fo-
ram os druidas, que lhe chamavam «o prego
da melancolia» e o cravavam na testa das
mulheres para que fossem puras e isentas
de precipitação.
Há fósseis que permitem localizar o apare-
cimento deste utensílio durante todo o se-
gundo glaciar.





mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim

1981

25 abril 2013

mário cesariny / poema


  

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando -
a delimitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



26 fevereiro 2013

mário cesariny / cadame




a vida é bela     .     comecemos
primeiro: o maior descanso
segundo: a maior liberdade
terceiro: o tratar-se dos pés
quarto: queimar


vejamos: a lua no quarto crescente cinge o macaco.
Separará sem dúvida o quente do frio, como uma
aterrissagem do génio expelindo o melhor, le plus
beau que auferimos de tanta felecidade

partiremos de noite como dois operários. Assim eu
venho para a grande fractura frente ao palácio.
A princesa repousa da sua casa, trago-lhe o direito
ao abandono nela. É encarregado da obra e da pala-
vra, amigo da bondade e da beleza, o meu cão.

olhar é desaparecer

abre a janela e passa orgulhoso
sob o aqueduto
o avião o
silêncio

além de tudo o novo cisne de Rhodes teu pai, pai de
si-mesmo e de quantos o habitam, ele que tanto
lembra o seu esplêndido vácuo e fala claramente,
separado do mundo.

quanto a Fausto, é de ver que se trata de gente doida
com aparência de sábios, gente que sabe, que sabe
muito, gente para fuzilar.

le vieux couple.


cadame.

le soleil.





mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980




13 novembro 2012

mário cesariny / movimento


  

movimento de alma
silêncio, emoção
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu leia?

para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença

não há outro sim
que não tem dizer
e é mais movimento?
qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo




mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981