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25 julho 2018

luís miguel nava / olhando o sol




     Um dia, olhando o sol, deu conta de que nele tinha os ossos mergulhados. Era no entanto impensável proceder a escavações no sol, embora tarde ou cedo a gente acabe por sentir no coração as escavadoras. Dir-se-ia um sol magnético, capaz de decidir dos resultados das mais árduas partidas de xadrez. Como se fosse uma das peças, dir-se-ia, ou como se a luz dele recuperasse através deste uma etimologia insuspeitada.

     Há quem em si se embrenhe até lhe dar o coração pela cintura – começou ele a escrever então. Como se a espinha do próprio acto de escrever ficasse à mostra, a mão foi-lhe emergindo aos poucos do papel.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002







20 fevereiro 2018

luís miguel nava / a pouco e pouco








     Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.

     Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.

     Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.




luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982







13 outubro 2017

luís miguel nava / ao mínimo clarão




Talvez seja melhor não nos voltamos
a ver, ao mínimo clarão
das mãos a pele se desavém com a memória.
As mãos são de qualquer corpo a coroa.

Das dele já nem sequer o itinerário
sei hoje muito bem, onde o horizonte
se desata o mar agora
regressa ao coração de que faz parte.

Ainda é o mar contudo o que se vê
florir onde ele chegar. Chamando a esse
rapaz rebentação,
o céu rasga-se à volta dos seus ombros.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982






17 agosto 2017

luís miguel nava / agora que de novo




O mar voa nas rochas, como
se a manhã se formasse onde se forma o cuspo eu aproximo-me
dele e arde a pele de que a memória
vem lentamente tomar conta.

Avanço com cuidado, agora que de novo
nas praias o mar solta os cães. O que chamávamos
verão são poços através
dos quais se some a pele pela memória dentro.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982






26 junho 2017

luís miguel nava / como alguém disse



Não é que eu seja sábio, como entre as de mármore alguém disse
ser sempre uma coluna de madeira,
mas creio já ter visto um livro brilhar como
se fosse o mar quem nele ao rebentar depositasse o texto.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982







17 maio 2017

luís miguel nava / rapaz



Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.




luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982





12 abril 2017

luís miguel nava / falésias






Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual o faço vir como um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982



05 janeiro 2017

luís miguel nava / na pele




O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar
ao longo das falésias, o que sempre
me traz a exaltação desses rapazes que circulam
por Lisboa no verão.
O mar está-lhes na pele. Partilho
com eles os quartos das pensões, sentindo as ondas
a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista
da pedra onde o mar vem largar a pele.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
como alguém disse
publicações dom quixote
2002




27 dezembro 2016

luís miguel nava / o tímpano e a pupila



Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos

se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002




12 abril 2016

luís miguel nava / o espelho



O céu inteiriçou-se a todo o comprimento
Do vidro ao levantar a persiana.


Levou as mãos ao rosto, atravessou a sala, ao canto
Da qual reinava o espelho, e aproximou-se
Dele como o não fazia há muitos anos.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




27 julho 2015

luís miguel nava / paisagem citadina



A pele por fulgurantes
Instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.

Não temos então delas senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração, se cruzam solitários
e agrestes, reflectidos

por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas no terraço.

A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002




17 maio 2015

luís miguel nava / a fome



Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002




26 fevereiro 2015

luís miguel nava / virgínia



Embora o sol fosse alto ainda, àquela hora
já dali desertara, as sombras iam
saindo aos poucos de debaixo dos armários.
De vez em quando as mãos, completamente absortas,
detinham-se no ferro, sobre a tábua, ao lado
do gigo agora esvaziado e dos pesados
tabuleiros de verga, onde se erguia a roupa.
Tornavam-se mais nítidos, assim, os seus
contornos recortados contra a luz.
Dali podia-se avistar o mundo inteiro.

Ao longo dos telhados, por onde um ou outro gato
corria atrás das pombas, oscilava
ligeiramente a corda, onde a cidade, o céu
e os montes pareciam pendurados.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002





23 julho 2014

luís miguel nava / por trás do espelho



Há sítios, como aquele pedaço de parede a que se encoste um espelho, que, embora existam, estão mesmo à beira da absoluta irrealidade, a qual de tal maneira neles mergulha às vezes as raízes que quase os diríamos definitivamente transportados para o lado de que só deus pode apreender a luz.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002



11 março 2014

luís miguel nava / céu árido



Devemos, ao falar, ter o maior cuidado com as palavras que empregamos, pois, sendo algumas delas particularmente vulneráveis às raízes, arriscamo-nos a ver apoderar-se-nos da fala uma vegetação que talvez chegue mesmo a destruir-nos. A fala quer-se árida, de uma aridez idêntica à roupa que nos cobre o corpo ou à do céu, de que me esforço, sempre que dele falo, por deixar à mostra um dos agrafos mais profundos.

  

luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002


14 junho 2013

luís miguel nava / o uivo



Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002


25 janeiro 2013

luís miguel nava / não muita vez




Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.




luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
onde: a nudez
publicações dom quixote
2002



29 maio 2012

luís miguel nava / ao acordar






Ainda mal tinha acordado, veio-lhe à memória
de súbito o rapaz que era costume
pagar na leitaria um copo a todos os amigos.

O dinheiro acendia-se-lhe
nas mãos antes de o pôr sobre o balcão.



  

luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002





17 janeiro 2012

luís miguel nava / um prego




Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002


01 setembro 2011

luís miguel nava / identidade





Ignoro o que ao certo seja ser, mas, seja o que for, dispõe de intensidade própria e regulável como o som dum aparelho ou a velocidade dum motor. Há momentos em que «sou» mais do que noutros, em que, se assim pode dizer-se, tenho a minha identidade acelerada.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002